“A beleza da luta: tão urgente quanto a vida”, com Marcela Cantuária
Um universo feminino de revolta, luta e denúncia. Conheça a artista plástica Marcela Cantuária em entrevista da seção #ArtistaFODA
Por Amanda Olbel / @planetafoda
Marcela Cantuária é pura e simplesmente um marco extraordinário – e necessário – para a arte contemporânea brasileira. Em seu trabalho permeiam questões de (re)existência fortíssima, focada em um universo feminino de revolta, luta e denúncia quanto à memória violenta do Brasil e América Latina. Observar de perto uma pintura sua é algo de carga emocional absoluta, sendo impossível não nos sentirmos sensibilizados pelas narrativas pictoricamente manifestadas, em tintas vivas e fluorescentes, sobre telas de algodão.
A artista plástica carioca, faz questão de evidenciar essas personagens envoltas de tragicidade, em contraste com a paleta colorida, possibilitando um enaltecimento das figuras. Isso se adiciona aos elementos surreais dentro da composição, que acabam somando à complexidade das obras. Ela nos conta que as ambientações imaginativas nas pinturas são parte da sua intenção em reencontrar a perspectiva política. Diz observar muito entre as pessoas de sua idade que existe uma letargia em se envolver com posicionamentos políticos, enfatizando o quando isso é péssimo. Acredita ser uma espécie de vergonha, mesclada com medo em assumir ou defender ideais da esquerda, sendo isso uma herança da barbárie que a ditadura empresarial militar implantou no pais, com o desserviço das grandes mídias e educação até os dias de hoje.
“Se minha pintura aborda figuras femininas brasileiras latino-americanas de luta é porque eu sou isso, é um reflexo. O trabalho acaba que assume esse lugar: a beleza da luta, enquanto o medo e a apatia dão espaço para a coragem e a imaginação”.
A ideia com sua escolha da pintura como linguagem (seja ela manifestada em suas diversas vertentes técnicas como óleo, acrílica, spray, aquarela), é também impedir a segunda morte do corpo: a memória da combatente. Então releva ter chegado a esse assunto por conta de perceber essa ausência de memórias inspiradoras em acervos de museu, muito em função da presença masculina e o olhar colonial europeu serem o que molda os acervos nas instituições brasileiras.
“Minha pesquisa tem um compromisso com aquilo que me toca o coração, ou seja, que considero tão urgente quanto a vida: a verdade e a memória. Entendo que primeiramente a pintura se revela pelas cores, formas, composição e depois há a fruição do seu conteúdo. No meu trabalho, busco resgatar narrativas majoritariamente femininas a respeito da construção do momento presente, personagens únicas na luta política da história que tiveram sua imagem manchada pela narrativa oficial e que por esse motivo tornaram-se invisíveis“.
Cantuária diz que seu processo de pesquisa começa a partir de arquivos e memoriais, com um vasto conteúdo de resistência. Infelizmente, não são difundidos amplamente, e acabam sendo acessados somente por aqueles que têm de fato o interesse em buscá-los. Todavia, também faz uso de documentários, livros em bibliotecas voltadas para o assunto de resistência política e vasculha muita coisa pela internet. A partir desses arquivos monta as composições, pinçando o que considera mais significativo na trajetória de cada uma das figuras que retrata.
Após ter encontrado um nicho certeiro de trabalho, percebemos Marcela em um movimento de querer ir além das telas, (fora sua prática de muralismo, inspirada por sua passagem pelo México), mas agora com as peças de Oratório, que se desdobram em diferentes suportes, explorando outros campos do sensorial.
“[Isso] Faz parte do desdobramento da pesquisa. Quando a gente tá em movimento acontece de expandir os suportes, acredito que é um processo natural. Os Oratórios põem em prática a ideia de santificar figuras femininas, encontrar um lugar de comunhão entre fé e politização, sem cair em cegueira de personalismo.”
Além de tudo, apesar do trabalho necessitar de uma pesquisa densa, a artista tem uma produção enorme, realizada em curto período de tempo. Ela nos conta que sempre realizou seus trabalhos de forma intensa, antes mesmo de entrar para o mercado, já que sua incorporação por galerias é algo recente (final de 2019), mas trabalha com a linguagem desde 2010.
“A velocidade da produção é alta porque encaro o assunto como urgente. Para que as narrativas não se percam no fazer, eu busco sempre manter a história (escrita) junto da pintura, sendo isso, como na sinopse da obra ou legenda no Instagram.”.
Quanto à sua família, revela que são pessoas trabalhadoras, no sentido que nunca tiveram muito tempo para debater questões políticas ou a levar para museus. Ainda mais por seus pais terem “crescido” durante a ditadura militar no Brasil, o que contribuiu para o estabelecimento dessa lacuna nas pessoas. Já sua irmã mais velha, Manuela Cantuária – roteirista e escritora, atualmente redatora da Folha de São Paulo – , sempre foi uma fonte de inspiração para o desenvolvimento pessoal da artista, que brinca dizendo: “Hoje em dia no grupo de família do zap estamos todos bem alinhados rs”.
Com uma pergunta provocativa, questionamos qual de seus trabalhos tem um conteúdo mais afetivo na visão dela e o porquê disso. Segue a resposta:
“Hum…todos os trabalhos são bem caros para mim, mas em particular Maternidade Compulsória, que compõe o acervo do MASP. Foi um momento muito delicado, quando uma grande amiga morreu em função de um aborto clandestino, e ela está figurando na pintura entre outras mulheres, próximas também, que vivenciaram a maternidade. “
Em sequência lhe pedi dois conselhos: Primeiro para Marcela do passado e o que diria para ela. A resposta bem-humorada veio em confirmação do último lançamento da cantora Marisa Monte, intitulado “Portas”, em que a artista plástica realizou em parceria a ilustração da capa e singles do álbum:
“Você vai trabalhar com a Marisa Monte quando fizer 30 anos, então foco e força e não desiste! Hahah”
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Já o segundo, direcionado às gerações futuras de artistas, que venham a se inspirar em seu trabalho, e o que gostaria de deixar nesse legado:
“Eu espero que vocês não precisem pintar sobre mulheres que foram assassinadas por lutarem por emancipação e dignidade. O legado é a memória em si, manter a chama revolucionária acesa e brilhante. “
Marcela Cantuária é artista brasileira, com bacharelado em Pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Desenvolve obras que entrelaçam imagens históricas oriundas do universo da política a representações da cultura visual contemporânea. Parte de suas invenções pictóricas advém de sua pesquisa sobre as lutas travadas por mulheres ao redor do mundo, como a obra Sônia, que homenageia uma guerrilheira comunista ribeirinha morta por militares na região do Araguaia, durante o primeiro golpe militar do Brasil, em 1964.
Participou de exposições em diversos museus e galerias ao redor do Brasil como Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica; Fortes D’Aloia & Gabriel; Centro Cultural da Justiça Federal; Museu de Arte de São Paulo (MASP); Farol Santander.
Fora exposições individuais: “Castelos no Ar”, Galeria Alfinete; ”Sutur|ar Libertar”, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica; “La larga noche de los 500 años”, galeria A Gentil Carioca e “Figurar o impossível”, Palácio das Artes. Integrando também os acervos do Museu da Maré e do Museu de Arte de São Paulo, assim como tendo realizado um mural no Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Visitadas por grandes artistas renomados, como Caetano Veloso e Adriana Varejão.
Para ficar por dentro de seu trabalho, acompanhe seu perfil no Instagram @marcelacantuaria, onde você encontra fotos de suas obras e respectivos processos. E para os próximos artistas do nosso mapeamento, siga nosso perfil @planetafoda, frente de mobilização LGBTQIAP+ da Mídia NINJA.