A barbárie pinochetista retorna ao Chile após a capitulação do governo Gabriel Boric
Vitória de Kast marca avanço da ultradireita no Chile após capitulação de Boric e abandono das promessas da Revolta
por Javier Pineda*
Kast e o Partido Republicano representam uma continuação do projeto original da ditadura: políticas neoliberais na economia e na sociedade, uma ordem pública entregue às forças policiais e militares, e um conservadorismo religioso apoiado pelos setores mais reacionários da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas. Em nível internacional, representam uma ultradireita sem disfarces, como Donald Trump nos Estados Unidos, Javier Milei na Argentina, Daniel Noboa no Equador e, no Brasil, Jair Bolsonaro.
O triunfo eleitoral de José Antonio Kast é inapelável: 7.254.850 votos, que representam 58,16% dos votos válidos, o transformam no candidato mais votado da história do Chile, sendo superado apenas pelo resultado de Michelle Bachelet contra Evelyn Matthei em 2013, quando venceu com 62% dos votos. É a primeira vez que uma candidatura de ultradireita vence as eleições presidenciais em nosso país.
Kast e o Partido Republicano representam uma continuação do projeto original da ditadura: políticas neoliberais na economia e na sociedade, uma ordem pública nas mãos das forças policiais e militares, e um conservadorismo religioso apoiado pelos setores mais reacionários da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas. Em nível internacional, representam uma ultradireita sem disfarces, como Donald Trump nos Estados Unidos, Javier Milei na Argentina, Daniel Noboa no Equador e como foi Jair Bolsonaro no Brasil.
Como Kast conseguiu vencer as eleições presidenciais? Quem é responsável por essa ascensão da ultradireita e pela derrota da candidatura de esquerda? O que se pode esperar de um governo de Kast?
A consolidação da ultradireita como reação à Revolta Popular
A ultradireita é o outro lado da moeda da Revolta Popular de outubro de 2019. As forças sociais e populares protagonistas da Revolta Popular não conseguiram se transformar em uma força constituinte, perdendo com a assinatura do Acordo pela Paz e pela Nova Constituição — no qual todas as demandas econômicas e sociais ficaram de fora — e, posteriormente, com a rejeição do projeto de Nova Constituição.
Esse Acordo pela Paz e pela Nova Constituição (novembro de 2019) e o acordo no Congresso Nacional que possibilitou o segundo processo constituinte (dezembro de 2022), uma vez derrotado o primeiro, não foram assinados pelo Partido Republicano. Este manteve-se à margem, declarando-se oposição a Sebastián Piñera após a assinatura do primeiro acordo e afirmando que não concordava com a habilitação de um segundo processo constitucional. No entanto, neste último processo — uma vez habilitado pelo Congresso — participaram das eleições para conselheiros constitucionais, obtendo 21 dos 50 assentos.
Apesar do fracasso do segundo processo constitucional, o qual lideraram e que foi rejeitado por 55% do eleitorado, conseguiram superar a hegemonia da direita tradicional. Inclusive, enfrentaram uma cisão pela direita, representada por Johannes Kaiser, que fundou o Partido Nacional Libertário. Nas eleições regionais (outubro de 2024), não obtiveram grandes triunfos nas disputas unipessoais (prefeitos e governadores), mas cresceram substancialmente como partido nos resultados para conselheiros regionais e vereadores.
Após esse processo, viveram seu pior momento. Johannes Kaiser começou a se apresentar como um candidato competitivo e incontrolável, enquanto Evelyn Matthei se consolidava em primeiro lugar nas preferências presidenciais. No entanto, após as eleições municipais, iniciaram uma campanha digital articulada por meio de trolls e bots para destruir seus adversários. Primeiro foi Johannes Kaiser e, depois, Evelyn Matthei, a quem chegaram a atribuir falsamente um diagnóstico de Alzheimer. Apesar de essa rede ter sido desmascarada, atingiu seu objetivo.
Em seu programa, ao contrário da candidatura presidencial de 2021, limitaram-se a enunciar apenas três temas principais, eixos que constituiriam um governo de emergência nacional: migração, segurança e economia.
Nesta campanha, conseguiram conectar-se à crescente xenofobia no Chile, especialmente contra populações migrantes racializadas, como venezuelanos, colombianos e haitianos, ameaçando mais de 300 mil pessoas em situação migratória irregular de terem que abandonar o país apenas com a roupa do corpo antes mesmo da posse do novo governo. Além disso, propuseram o “fechamento das fronteiras”, embora se refiram apenas aos pontos não autorizados, e não aos postos legais pelos quais ingressa a maioria da população migrante.
Em segundo lugar, exploraram a sensação de insegurança vivida no país, que, apesar dos índices comparativos, é percebida como colocando o Chile entre os seis países mais inseguros do mundo. Essa sensação, para cuja construção contribuíram com o apoio indispensável do poder midiático, foi traduzida em medidas de fortalecimento das polícias e em discursos grandiloquentes sobre o combate à criminalidade. É paradoxal que Kast tenha vencido em quase todos os estabelecimentos penitenciários do país.
Por fim, no campo econômico, afirmaram que o país está em colapso e que irão dinamizar a economia por meio de políticas neoliberais clássicas: redução do gasto fiscal em 6 bilhões de dólares, redução de impostos para grandes empresas e eliminação das contribuições (imposto territorial) para a primeira moradia. Tudo isso, segundo Kast, geraria automaticamente maiores taxas de crescimento, aumento do investimento, maior arrecadação fiscal, redução da dívida pública e diminuição do desemprego, apesar de a experiência comparada demonstrar que tais efeitos não ocorrem de forma mecânica.
A expulsão de migrantes, a recuperação da ordem pública e as políticas de crescimento econômico substituíram as demandas por eliminação das desigualdades sociais, garantia de direitos como educação, saúde, moradia e seguridade social, além da proteção dos territórios contra a depredação ambiental.
Gabriel Boric: venceu com votos da esquerda, mas governou com a agenda da direita
No segundo turno das eleições presidenciais de 2021, com voto voluntário, Gabriel Boric venceu Kast com 55% dos votos válidos. Esse triunfo foi uma resposta à ameaça representada por uma candidatura pinochetista com um programa extremamente conservador. Além disso, Boric simbolizava uma geração que ainda não havia governado o país e que poderia representar a oportunidade de grandes transformações sociais, considerando-se também que, paralelamente, estava em curso o primeiro processo constituinte.
Apesar da vitória expressiva, o governo Boric decidiu não impulsionar nenhuma reforma até a realização do plebiscito de saída do primeiro processo constituinte, ocorrido em 4 de setembro de 2022. Ou seja, de 11 de março até essa data, não houve impulso político do governo. Pelo contrário, não fortaleceram o orçamento do órgão constituinte e enterraram a discussão sobre os saques dos fundos de pensão, medidas extremamente populares que a própria esquerda havia promovido durante a pandemia para aliviar a situação econômica das famílias. Além disso, após uma visita frustrada da ministra do Interior a Temucuicui no primeiro dia de governo, optaram por militarizar as regiões do Biobío e da Araucanía, da mesma forma que Sebastián Piñera fizera por mais de um ano.
Após a derrota no plebiscito de setembro de 2022, veio a capitulação do governo. Sem sequer disputar o sentido político do momento, sucumbiram a uma agenda que não era a sua. O autodenominado primeiro governo ecologista da história aprovou o CPTPP (TPP-11), tratado de livre comércio cuja ratificação estava paralisada no Congresso desde a Revolta Popular de 2019. Também impulsionaram uma lei de permissões setoriais que flexibilizou a legislação ambiental.
O ex-presidente Sebastián Piñera, que havia sido apontado por Gabriel Boric como responsável por violações de direitos humanos e ameaçado de responder perante tribunais internacionais, acabou sendo reabilitado como um estadista e homem democrático.
Na área da segurança, o retrocesso foi ainda mais evidente. Toda a agenda de segurança de Piñera, anteriormente barrada pela oposição, passou a ser defendida como se fosse própria, incluindo normas que garantem impunidade a policiais que disparem contra civis; modificações para tornar mais eficaz a Lei Antiterrorista; e dispositivos típicos do populismo penal, amplamente ineficazes no combate ao crime organizado.
Na política externa, ao lado de Milei, Boric esteve entre os poucos presidentes que se alinharam a Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e que condenaram com a mesma veemência da direita os governos da Venezuela e da Nicarágua. Trata-se de uma política cínica, pois, ao mesmo tempo em que denunciava a prisão política nesses países, processava Héctor Llaitul, principal líder do movimento autonomista mapuche, que acabou condenado a mais de 20 anos com base na Lei de Segurança Interior do Estado.
Na saúde, o governo promoveu um resgate financeiro às ISAPRES, que estavam à beira da falência, em vez de avançar para a criação de um Fundo Único de Saúde. Já na previdência, com o objetivo exclusivo de alcançar um acordo político, fortaleceu o sistema de capitalização individual e as AFPs, ao ampliar o volume de recursos administrados por essas instituições.
Em suma, todas as esperanças de mudança depositadas em Gabriel Boric rapidamente se dissiparam, dando lugar a políticas ainda mais regressivas do que aquelas que o próprio governo de Sebastián Piñera não conseguiu implementar em seu último mandato.
A continuidade e a identificação da candidatura de Jeannette Jara com o governo Boric tornaram-se o principal fator estrutural da derrota no segundo turno presidencial. Apesar da ampliação ao centro (Democracia Cristã) e à esquerda não oficial, isso não foi suficiente para construir uma maioria eleitoral. A candidatura perdeu em todas as regiões do país, inclusive na Região Metropolitana.
O que esperar de um governo de José Antonio Kast?
Kast, diferentemente de outros líderes da ultradireita, não moderou seu programa. Limitou-se a cuidar da forma e a evitar, durante a campanha, pronunciar-se sobre temas mais polêmicos, como o indulto a criminosos condenados por crimes contra a humanidade e questões da chamada “agenda de valores”, como o aborto em três causais e a eutanásia.
Quanto às principais medidas, algumas já foram anunciadas. Na área econômica, suas primeiras ações incluem a redução de impostos para grandes empresas e a eliminação do imposto territorial (contribuições) para a primeira residência — medidas que beneficiam exclusivamente os setores mais ricos do país. Além disso, anunciou um novo Estatuto dos Funcionários Públicos, com o objetivo de precarizar as condições de trabalho dos servidores do Estado.
Uma de suas propostas centrais é a redução do déficit fiscal em 6 bilhões de dólares em 18 meses, algo que só pode ser concretizado por meio de cortes profundos no financiamento das políticas sociais. Durante toda a campanha, Kast se recusou a esclarecer quais políticas seriam afetadas. Apenas um de seus porta-vozes, Rodolfo Cárter, admitiu que essa informação não era divulgada porque, segundo ele, “no dia seguinte o país estaria incendiado”.
Ainda assim, os indicadores macroeconômicos deixados pelo governo Boric são positivos: o investimento estrangeiro aumentou, a inflação está controlada e o crescimento, embora modesto, manteve-se estável. Isso significa que uma simples mudança no discurso midiático pode alterar rapidamente a percepção sobre a economia, atribuindo-se méritos inexistentes. Apesar disso, Kast anunciou um “choque econômico” para os primeiros meses de governo, sem detalhar seu conteúdo.
Na política migratória, as declarações têm sido erráticas. A promessa de expulsar 330 mil migrantes em situação irregular por meio de voos financiados pelos próprios migrantes foi sendo relativizada, e, em seu discurso de vitória, Kast admitiu que não se trata de algo simples. É provável que, à semelhança de Donald Trump, adote uma política performática de criminalização do migrante e de produção sistemática do medo.
Por fim, na área da segurança, é altamente provável que amplie o uso das Forças Armadas em todo o território nacional para gerar uma “sensação de segurança”. Isso significaria estender ao conjunto do país o que Boric fez com o povo mapuche: uma militarização generalizada sob o pretexto de enfrentar a “crise de segurança”. Tal cenário pode representar a maior ameaça às organizações sociais e a todos aqueles que ousarem resistir às medidas reacionárias e neoliberais que o governo Kast pretende implementar.
Como ocorreu em outros momentos históricos e em diferentes contextos ao redor do mundo, o povo chileno terá de se preparar para resistir a esses anos de governo da ultradireita e impedir que avancem sobre todos os nossos direitos.
Javier Pineda Olcay* é diretor de El Ciudadano



