A árvore que anda também voa
Uýra Sodoma, Juliana Curi e Martina Sönksen conversam com a Cine NINJA sobre o documentário Uýra: A Retomada da Floresta, que vem ganhando mundo
Por Juliana Gusman
Os primeiros planos de Uýra: A Retomada da Floresta (2022) já não nos poupam da nossa tragédia inarredável. Mesmo a terra úmida da Amazônia arde seca e estorricada, envenenada de desenvolvimento, adoecida de progresso. Em nome de falsas prosperidades se aniquilam farturas, e a fumaça segue obstruindo os brônquios do pulmão do mundo. A denúncia não poderia ser amainada em um documentário que pretende, em última instância, tratar das violências que erigiram Brasis. Mas o cinema também pode esperançar. Afinal, “tudo que morre vira vida na Floresta”, nos ensina Uýra Sodoma, e resistências não cessam de abrolhar.
As audiovisualidades desta entidade híbrida, meio gente, meio planta, criada e performada por Emerson Pontes (Santarém, Pará, 1991), vêm semeando otimismos. E a “árvore que anda” não se intimida com lonjuras: o filme, de corte (auto)biográfico, teve sua estreia mundial no Frameline 46 – San Francisco International LGBTQ+ Film Festival – onde foi premiado com o Audience Award de Melhor Documentário – e acaba de ser anunciado na programação oficial do festival Outfest, em Los Angeles. Mais forte que o fogo, Uýra alastra encantamentos. Artista multiplamente atravessada – pela decolonialidade, pelas diásporas indígenas, pela memória ancestral, pelo próprio corpo e pelas intempéries de seu tempo –, ela manufatura, diante da câmera, tecnologias de sobrevivência.
Uýra: A Retomada da Floresta é uma obra sensorial e sensitiva, dividida em três atos – Uma terra pelada; Reconhecem-se as espécies pioneiras; e Para uma sucessão ecológica –, que parte do desalento para tracejar combatividades. A Cine NINJA conversou com Uýra Sodoma, Juliana Curi, diretora, e Martina Sönksen, que partilha a escritura do documentário com Uýra, sobre os processos que assinalaram essa travessia comum.
Cine NINJA: Primeiramente, gostaria de perguntar sobre o desejo que inspira a feitura do filme. Por que fazer um documentário sobre Uýra? Quais urgências motivaram sua criação?
Uýra Sodoma: O diálogo, sincero e com respeito, é um caminho de cura para os mundos. Ou melhor, é a ponte para se construir outros mundos. O filme é um convite ao diálogo: apresenta as violências, forças e lutas em Brasil, para que o Brasil e os mundos conheçam de verdade as Amazônias. Eu poderia não querer diálogos, como já não quis. Há séculos os brancos adentram em nossos territórios e vidas, sem querer diálogo algum: só roubando, matando, nos escravizando ou apagando. Insisto no diálogo, quando também me autorizo a gravar o filme, e peço licença à minha gente pra isso, não para uma possível pacificação destes mundos. Eles continuarão em guerras. Precisamos de diálogos, com gentes dos mundões, para garantir a proteção das florestas e ecologias onde habitamos, a da Amazônia. Precisamos de diálogo para nos contar da forma correta, para além dos estereótipos racistas que existem sobre nós, pessoas indígenas e LGBTQI+. É por meio dos diálogos que também acessamos estes espaços de valor econômico e simbólico, de onde historicamente somos excluídos. São nesses diálogos que provocamos curas antigas e profundamente presentes no agora, onde redemarcamos nossos saberes, culturas e valores. Carregamos infinitas vozes, muitas que nem são de gente.
No filme, que mistura ficção e autobiografia (mas que não é sobre mim somente, mas de um coletivo), são exibidas denúncias de violências sociais, ambientais e espirituais no Brasil – elementos que geraram e constituem profundamente o que é a nação. Todas essas violências estão amplamente em curso e são invisibilizadas pelo Estado brasileiro – sobretudo com o governo Bolsonaro, que as respalda e incentiva publicamente. Mas mais que violências, o filme demarca as diferentes, constantes e ancestrais lutas no tempo de hoje, com destaque às lutas indígenas e LGBTQI+, da cidade à Floresta do território amazônico.
Juliana Curi e Martina Sönksen: Uýra nos mostra a potência dos cruzamentos criados por sua interseccionalidade. Ela tem a capacidade de despertar, nos grupos de lutas adjacentes, o entendimento de que na essência de todas essas lutas está a conservação da vida. Diante de uma emergência climática sem precedentes, Uýra nos mostra um caminho possível de reconexão com a Floresta, apontando que as soluções para uma justiça climática passam por diálogos coletivos.
Outro aspecto do trabalho de Uýra que move a feitura desse filme é sua dimensão coletiva. Diante de um avanço voraz dos valores neoliberais de individualismo, Uýra nos ensina sobre a construção de uma estratégia de luta coletiva. No segundo ato do filme, tomamos conhecimento dessa estratégia de Uýra através da elaboração do conceito das Espécies Pioneiras: por meio de uma metáfora ecológica aprendemos técnicas de agrupamento e luta coletiva espelhadas nos movimentos naturais das plantas na Floresta.
Cine NINJA: Há outras experiências cinematográficas que inspiraram o filme?
Juliana Curi e Martina Sönksen: Sim, mas não apenas experiências cinematográficas; fomos alimentados por poesia, performances e artes visuais. Uma das principais referências que nos guiou, e que nos foi apresentado por Uýra, foi o poeta amazonense João de Jesus Paes Loureiro. Grande referência da poesia amazônica, Loureiro dizia que o encanto da Amazônia brota do fundo do Rio Negro. Um rio de dimensões oceânicas, que tece e alimenta todo o estado, não só́ com os alimentos da floresta e da água, mas com a sua mitologia e imaginário sofisticados. Traduzir esse imaginário em um filme de não-ficção, contemporâneo e sociopolítico, foi a base criativa que norteou e orientou todas as escolhas narrativas e estéticas da equipe.
Uýra é uma entidade que nos apresenta a um universo que muitas vezes não conseguimos “explicar” de forma racional. Existe uma dimensão do trabalho de Uýra que se entende com o coração e a sensação. Portanto, não poderíamos abordar essa história com perspectivas apenas cartesianas, lineares e racionais. É por isso que apostamos na linguagem do híbrido entre ficção e documentário. Nossas referências passam por cinema e por outras artes. Foram alimento para nós a arte performática do Secos e Molhados, o filme Priscilla, A Rainha do Deserto (Stephan Elliot, 1994), passando pelo documentário Botão de Pérola (2015), do Patrício Guzmán, e pelo curta-metragem Tempo Circular (2018), da Graci Guarani.
Cine NINJA: Como já mencionado, Uýra: A Retomada da Floresta é uma obra biográfica, mas que não pretende estabelecer uma narrativa linear, total ou final sobre Uýra. O tempo do filme é outro, mais fragmentado, circular. Como foi o processo de construção dessa biografia fissurada? Quais aspectos pretendeu-se colocar em cena? O que se escolheu deixar de fora?
Juliana Curi e Martina Sönksen: Como falamos anteriormente, existe uma dimensão do trabalho de Uýra que não se apreende racionalmente. Existe uma camada do seu trabalho que é sensorial e interseccional ao ponto de incentivar o questionamento do antes sabido. E isso nos permeou durante a construção do roteiro, criando algo que tivesse a capacidade de romper com ideias de tempo, espaço e cronologia, necessariamente. Apesar de apostarmos num roteiro de três atos, trouxemos novas estruturas para essa construção, nos baseando num fio condutor emocional, sensorial e sobretudo, poético.
Na construção visual, Uýra possibilitava um rompimento da linha que divide documentário e ficção e da linha que divide filmes de arte e filmes sociais. Na construção narrativa, ela também nos provocava a questionar essa noção de tempo linear muitas vezes imposta ao cinema, por isso mergulhamos juntes nos campos de estudos sobre a noção de tempo para outros povos e culturas para além da hegemonia da escola tradicional cinematográfica.
Cine NINJA: Como se vê tanto nos créditos, como no material de divulgação Uýra: A Retomada da Floresta é uma produção coletiva. Claro que, no cinema, sempre consideramos que há essa dimensão da coletividade, mas neste documentário há uma espécie de partilha da autoria, que se torna comum. Também percebo uma espécie de desierarquização das diferentes funções da equipe, diferentemente do que se costuma observar no mercado audiovisual. Vocês podem comentar sobre essas trocas que assinalaram a produção do filme? Como foram buscadas as alianças que permitiram seus processos?
Uýra Sodoma: Algo muito especial que gostaria de destacar é que, sob os cuidados principais de Martina, o roteiro foi preparado utilizando textos/histórias que eu já havia escrito em postagens de Instagram. Da mesma forma foram pensadas as imagens do filme, reproduções de fotoperformances já produzidas ou divulgadas. Então a produção do filme me fez reviver vários estados de Uýra, num processo que ainda não tinha vivido, por nunca repetir um rosto ou história contada via montação.
Cine NINJA: Um destaque do documentário é, certamente, a sua fotografia, sobretudo nas cenas das performances de Uýra. Como foi alinhar o seu trabalho artístico com o registro audiovisual e documental? A feitura do documentário estimulou outras experimentações cênicas?
Uýra Sodoma: Eu amo e vivo de contar histórias. Histórias de mundos amazônicos – sendo cada Vida, um mundo. Eu conto na maquiagem, nas vestimentas, nos textos e presença do momento-espírito Uýra. Da favela, vou ao centro, de lá, vou à Floresta e parto para o sudeste e países do mundo, voltando para meu beco. Enquanto transito, vou contando histórias. Acho que não alinhei tudo isto com o registro audiovisual/documental, mas o convidei para estar comigo no meu dia a dia, e o cinema – representado pela Martina, Juliana e Lívia (Cheibub, produtora), me provocou rumos experimentais que me foram novidade e potência. Então não foi uma linha, mas uma grande espiral, na qual rodamos juntas.
Cine NINJA: Fazer um documentário também é sempre apostar em algum tipo de intervenção no real: muitas vezes, busca-se engajar plateias para provocar transformações. O que pretende provocar Uýra: A Retomada da Floresta? Quais utopias movem o filme?
Uýra Sodoma: O nome do filme já indica a recuperação de força e ancestralidade; convida à luta para reterritorializar com nossas vidas os territórios de morte e abandono. O documentário possui força educativa, faz ver o que foi ensinado/forçado a se manter invisível – este invisível que não se debate, que nos mata de muitas formas. Quantos brasileiros ou de outros mundos sabem que o Brasil é o campeão de assassinatos de pessoas trans e de ativistas ambientais do mundo? Onde se está discutindo o profundo apagamento histórico de pessoas indígenas, como eu, que foram forçadas a uma diáspora em Brasil? Sempre pontuo que para começar a resolver um problema, temos que vê-lo. Então, no filme, sobre estes silêncios coloniais e do Estado nós cantamos. Ocupamos com nossas presenças estes espaços esvaziados pelo grande projeto de nação, essencialmente (e ainda) patriarcal, colonialista e fascista.
Sinto o filme como uma grande energia, que deseja se fazer ver, sentir e revoltar sobre como estamos em Brasil, e se fazer saber, para que os mundos tenham a certeza de que somos muitas árvores lutando nesta e por estas grandes florestas Amazônicas. Os locais de destaque dos mundos ainda não são feitos para pessoas como eu: indígena, trans, periférica e oriunda da apagada e subestimada região norte do Brasil. Ocupar estes lugares é insistir nos diálogos, para uma demarcação coletiva de gente parecida comigo, de que podemos sim, e com valor, ecoar nossas vozes e trabalhos aos mundos.