
A arte reflete a vida: fascismo e xenofobia na categoria Melhor Filme
De quais maneiras a realidade geopolítica de 2024 se apresenta na categoria principal do Oscar?
Por Igor Fonseca
Enquanto os blocos de Carnaval nos carregavam pelas águas de Março, Walter Salles fazia história em Los Angeles, ao se tornar o primeiro brasileiro a vencer um Oscar, na categoria Melhor Filme Internacional pelo furacão “Ainda Estou Aqui”. Vitória interessante dentro do atual contexto sociopolítico dos Estados Unidos, em que a presença latina em território estadunidense tem sido alvo de intensa xenofobia institucional, sofrendo represálias do Estado e da população nativa. Ainda mais que o decorrer da cerimônia, ironicamente, revelou as fronteiras impostas pela indústria cinematográfica estadunidense a obras estrangeiras.
Em diferentes níveis, alguns dos selecionados para a categoria Melhor Filme (incluindo o representante brasileiro) compartilham de temas em comum: choque étnico-cultural e repressão ideológica, dando acenos, cada um dentro de sua lógica interna, para os perigos da ascensão da extrema-direita. Seja no campo da metáfora, vide o Estado fascista de Oz em “Wicked”, ou em revisitações ao passado não tão distante, a exemplo de “O Brutalista” e, claro, “Ainda Estou Aqui”.
Há ainda duas vias de discussão da questão imigratória, manifestada em “Anora” e “Duna: Parte Dois”. No primeiro filme, o desmantelar do sonho americano observado através dos filtros da atual juventude, completamente embriagada em neon e redes sociais. No outro, um flerte cirúrgico com o Oriente Médio para sinalizar quanto aos perigos da ascensão do fanatismo e do culto ao líder. Experiências distintas em estética, mas unidas pelo elo de evocar uma esterilização da realidade por meio da imagem. O que quero dizer com isso?
Que o Oscar está disposto a reunir, em seus indicados, um conjunto de filmes que dialoguem com o clima atual. Mas na hora de premiá-los, gravitam em torno daquelas cujas embalagens já estejam de acordo aos gostos tradicionais dos votantes. Isso não é necessariamente um juízo de qualidade, que atesta todas as percepções que tive com esses longas. É apenas uma compreensão do porquê eles chamaram a atenção da Academia apesar de suas escolhas temáticas.
Fonte: Drew Daniels / Universal Pictures
“Ainda Estou Aqui” é beneficiado pela pequena escala de seu universo, confinado a ignorância consciente da classe média, que só percebe o impacto dos ataques à democracia quando eles espreitam à sua porta. Não temos acesso aos impactos do contexto fora do núcleo da família Paiva, cuja única sinalização do mundo exterior – a empregada Zezé – é prontamente ignorada pelo enredo. Não dá pra esperar diferente de um filme produzido por forças financiadoras da Ditadura Militar. E por isso, ganha a estatueta.
“Anora” traz a imigração e a xenofobia sentidas no corpo branco, em uma narrativa envolta de tropos de comédias românticas, criando um contraste com a realidade trágica da sua protagonista. Por mais que tenha superado barreiras dadas ao gênero, ao tema, e por ser produção independente, o filme ainda é uma sinalização mais palatável a todos os que estão sofrendo para além das colinas de Hollywood. Nessa situação, também se encontra “O Brutalista”, substituindo as inclinações para o romance por uma estrutura que remonta a Era Dourada do Cinema, cujos últimos anos coincidem com o espaço temporal do filme. E por isso, ambos ganham a estatueta.
Nesse sentido, a vitória de “No Other Land” é uma anomalia. Reconhecer um documentário palestino numa nação (e numa instituição) pró-Israel é abrir um espaço para a realidade. Por holofotes em um retrato da crise humanitária que acontece neste instante, transformado em audiovisual de excelência, rompe com as representações adocicadas que foram reconhecidas em outros momentos.
Fonte: Antipode Films / Rolling Stone
Para uma cerimônia que iniciou prometendo surpresas não vistas há anos, talvez décadas, ela termina reafirmando a força da ideologia simplória que domina os votantes do Oscar. Velhas tendências são confirmadas em uma indústria cada vez mais carente de criatividade, e eternamente indisposta a ouvir vozes fora de seu território. A exemplo do Grammy, vai se fechando para si, e reconhecendo apenas o que reflete e não fere os valores do estadunidense.
É preciso dar um jeito, meus amigos.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.