Por Igor Serrano

Em uma tarde de outubro de 2024, no meio do horário comercial, o jovem estudante de Ciências Sociais, Ernesto, 30 anos, adentra uma livraria no
Centro do Rio fugindo do ar seco poluído, do barulho dos carros, das pessoas e da vida adulta. A aleatoriedade da escolha, surpreendentemente, lhe traria uma experiência marcante ao fazer tocar o sino do número 37 da Rua do Ouvidor.

Instalada desde 2004 no coração econômico da capital carioca (após ficar por seis anos no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica) e a poucos metros
do Arco do Teles, a Livraria Folha Seca é referência quando o assunto é livro de samba, futebol ou temáticas da cidade, além de ser a opção cultural de muita gente aos sábados, quando a animada cena musical faz esquecer a semana que passou. “É a melhor livraria do Rio!”, atesta, sem pestanejar, o músico e diretor do Cordão do Boitatá, Kiko Horta. “Quando a livraria se mudou para a Ouvidor, mais do que falar do Rio, ela passou a encarnar o Rio”, relata com carinho o jornalista cultural, Leonardo Lichote, que a acompanha desde 1999.

As paredes em cor de abacate do casarão dão vida a inúmeras páginas de histórias, bandeiras e diversos quadros, com destaque para duas fotografias de Pelé e Didi (inventor do icônico chute que dá nome ao espaço) de autoria de Ricardo Beliel, cards emoldurados do time do Flamengo de 1979, algumas artes de Cássio Louredano, imagens do Presidente Lula e uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco.

A luz amarela baixa, o ar- condicionado na temperatura ideal e a música ambiente, que naquele dia alternava canções de Sarah Vaughan e Nana Caymmi, ofertavam um ambiente agradável e acolhedor, numa calmaria diametralmente oposta à do caos de lá de fora.

Do balcão em formato de L, de madeira e vidro, Miguel, 40 anos, vascaíno, formado em História, prontamente cumprimenta o visitante e pergunta
se pode auxiliá-lo com algum título ou tema. Diante de tantas opções interessantes, Ernesto pede um dos últimos livros do historiador Luiz Antônio
Simas, ‘Maldito Invento dum Baronete: Uma Breve História do Jogo do Bicho’, assunto que despertou sua curiosidade desde que assistiu à série ‘Vale o escrito’.

Simas, por coincidência, é frequentador assíduo do local e um dos grandes amigos do dono, Rodrigo Ferrari, o Digão, desde quando se conheceram nos corredores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. As trajetórias do professor e da Folha Seca, aliás, em muito dialogam.

‘Folhasequense’ assumido, como orgulhosamente gosta de se apresentar, o terceiro escritor mais vendido da Feira Literária de Paraty (Flip)
deste ano teve sua primeira obra, ‘O vidente míope’, lançada pelo selo editorial da livraria em 2009. Ele é direto ao definir o grau de importância em sua carreira: “Está ligada de uma forma umbilical à minha trajetória, não dá para dissociar. Fundamental para mim”.

De lá pra cá, muitas memórias marcantes, entre lançamentos, acordes e copos de cerveja gelada, com destaque para a inesquecível cena testemunhada do casamento que começou na Igreja da esquina (na Rua 1º de Março) e esticou para a tradicional roda de samba da frente da livraria, com noivos, padrinhos, convidados e seus trajes de gala atraídos pelo astral da reunião musical.

Esse sincretismo de vivências, por sinal, é apontado por Luiz Antônio Simas como um dos grandes diferenciais do local: “Em tempos de condominização da cidade, dos lugares fechados, a Folha Seca é um lugar de resistência e invenção não só das livrarias de rua, mas da própria ideia da rua enquanto ponto de encontro e espaço de construção de sociabilidade urbana”, lembra.

Enquanto folheia as páginas da gênese do jogo do bicho, Ernesto puxa papo com Miguel. Ainda encantado pela casualidade da descoberta do lugar, escuta que desde a chegada do livreiro à casa, em fevereiro de 2018, somente em duas ocasiões o sino não tocou: no dia seguinte aos assassinatos
de Marielle Franco e Anderson Gomes e durante a pandemia de Covid-19, quando diversas livrarias fecharam para não reabrir nunca mais (o que quase
aconteceu com a Folha Seca).

Segundo a última edição do Anuário Nacional de Livrarias (lançado em 2023 pela Associação Nacional de Livrarias), o Brasil possui 2.972 espaços destinados à esta finalidade, dos quais 252 em funcionamento em todo o Estado do Rio de Janeiro.

Ernesto paga por sua nova leitura, agradece e se despede prometendo voltar em breve. Quando o sino para de tocar e a porta da Rua do Ouvidor nº 37 encosta, ele suspira ao lembrar do metrô lotado que o aguarda no quarteirão ao lado.