“Ex-presidente Lula é condenado por unanimidade pelos desembargadores do TRF 4 de Porto Alegre”. Esse texto apareceu na tela da emissora da família Saad por volta das 11 horas da manhã desta quarta, 24 de janeiro. O furo jornalístico da BandNews foi confirmado 6 horas depois pelo TRF 4.

 

 

A foto do momento em que o texto apareceu na tela da TV viralizou nas redes sociais. Muita gente achou que era montagem, fake news – termo da moda para desacreditar uma informação. Mas não era. Tá na dúvida, assista ao vídeo em que o “furo” foi flagrado. Demorou quase duas horas para que a BandNews fizesse um “erramos” para dizer que a informação era fruto de um erro técnico no gerador de caracteres.

Claro que a Band não deu um furo. Naquela hora da manhã, antes mesmo do primeiro voto ter sido proferido, a manchete da emissora estava mais para barrigada – jargão jornalístico para um erro ou divulgação de informação não checada. O caso é, no entanto, uma alegoria perfeita para todo o processo envolvendo a mídia, a Lava Jato e o ex-presidente Lula: o judiciário confirmou a sentença já decretada desde o início pelos grandes meios de comunicação do Brasil: o Lula é culpado.

A lista de manchetes que ao longo dos últimos dois anos – para ficarmos apenas no período da Lava Jato – condenou Lula é extensa. Talvez uma das mais emblemáticas tenha sido a capa da Veja que circulou na véspera da eleição de 2014: “Eles sabiam de tudo”.

A cobertura da Lava Jato inteira é uma sentença condenatória baseada no domínio do fato – conceito jurídico pelo qual um conjunto de evidências ao serem cruzadas se tornam fortes o bastante para comprovar um crime, mesmo sem prova material. O recurso não é novidade, foi usado largamente na cobertura e julgamento da Ação Penal 470, conhecida como mensalão.

Toda a cobertura tem sido desproporcionalmente desequilibrada em termos de tempo e espaço para dar voz aos acusadores e suas teses, para apresentar indícios e ouvir depoimentos que contribuam para induzir nas pessoas a opinião de que, claro, diante de tanta coisa, Lula é culpado.

Afinal, onde há fumaça há fogo, “algo errado tem aí”, etc etc. O tempo ou espaço destinado à defesa eram absurdamente menores.

Dados do Manchetômetro são bem diretos ao mostrar essa desproporcionalidade, conforme tabelas abaixo indicando as distribuição de matérias contrárias, favoráveis, ambivalentes ou neutras publicadas pela mídia sobre Lula e Sérgio Moro.

Total de matérias publicadas entre janeiro de 2017 e janeiro de 2018 nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo. Valências sobre o presidente Lula.

 

Total de matérias exibidas entre janeiro de 2017 e janeiro de 2018 no Jornal Nacional. Valências sobre o presidente Lula.

 

Total de matérias publicadas entre janeiro de 2017 e janeiro de 2018 nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo. Valências sobre o Juiz Sérgio Moro.

 

Total de matérias publicadas entre janeiro de 2017 e janeiro de 2018 nos Jornal Nacional. Valências sobre o presidente o Juiz Sérgio Moro.

Aliás, falando em neutralidade….

Um dos maiores engodos da nossa sociedade é a ideia de que pessoas e instituições podem ter posições “neutras e imparciais”, em particular a mídia e a Justiça. Quem historicamente disseminou esta isenção beatificada foi a elite política e econômica que fundou nosso país.

O argumento que sustenta a neutralidade e imparcialidade do jornalismo e da Justiça é o de que estas atividades são desenvolvidas a partir de uma formação técnica. Em favor da tal neutralidade jornalística se diz que ela é baseada na checagem dos fatos, na análise dos vários aspectos que compõem o fato, na objetividade no momento da construção da narrativa a partir da respostas a perguntas como quem, o que, onde, quando e porquê. No caso da Justiça, o Direito e as leis existentes são o aparato técnico que permitem a um juiz ou juíza “fundamentar” suas decisões com base no elenco das normas legais e, também, dos precedentes (decisões anteriormente tomadas por juízes e tribunais e que servem de referência para a tomada de novas decisões). Sendo assim, o Judiciário torna-se um Poder neutro de interesses cuja missão é arbitrar conflitos.

Ao fim e ao cabo, os argumentos técnicos sempre são utilizados para tentar colocar um ponto final em qualquer debate ou questionamento. Ou seja, a imparcialidade e a neutralidade estão na técnica.

Mas, por trás disso, se omite o fato de que todo o processo de construção de uma notícia parte de filtros, escolhas feitas a partir de valores dos profissionais que produzem a informação e, principalmente, da linha editorial definida pelos donos dos veículos – geralmente empresários ligados à oligarquia política e econômica do Brasil. Desde a seleção de qual fato deve ou não virar notícia, quem serão os entrevistados, a escolha da foto, da legenda e da manchete, do lugar ou espaço que a notícia vai ocupar, todas essas decisões têm em maior ou menor grau interferências subjetivas, juízos de valor, ou seja opiniões.

Ou será que a foto de capa do jornal O Globo desta quarta-feira, 24, foi escolhida ao acaso, de forma imparcial? A mão de Lula no pescoço é uma alusão à imagem da degola.

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Bem parecida com a foto da Dilma cravada por uma espada.

Ou que tal a capa do jornal Extra, também da família Marinho, de uma isenção jornalística indiscutível.

E que conveniente é construir uma opinião sem dizer que se está fazendo isso.

Fica mais fácil de mobilizar os corações e mentes das pessoas para acreditar em algo que supostamente é neutro e imparcial e, portanto, um fato. Foi isso que a mídia fez no mensalão, no impeachment e agora na Lava Jato. Estou exagerando? Será?

Olha só o print do tweet de um “coleguinha” após a condenação de Lula pelo TRF 4. É uma verdadeira “confissão de culpa” para o julgamento da parcialidade da mídia.

Sob essa falsa ideia de neutralidade e imparcialidade a mídia tem construído, ao longo da história, as piores mentiras, tem interferido de forma indevida nos processos políticos, tem feito valer seus interesses – sim a mídia tem interesses – e os dos que ela representa (a elite, setores econômicos, os políticos). Por desfrutar do poder de falar massivamente para quase a totalidade dos brasileiros, os grupos midiáticos hegemônicos adotam um discurso único para promover suas ideias e construir uma opinião calcada no senso comum, no baixo questionamento, na ausência de contraditório. (cobertura da Globo sobre o comício das diretas em 1984, edição tendenciosa do último debate entre os presidentes no Jornal Nacional, cobertura sobre o sequestro do empresário Abílio Diniz, jornadas de 2013, etc) são só alguns poucos exemplos.

Falando de edições do Jornal Nacional, o que dizer dos 52 minutos – de um total de 55 minutos de jornal – dedicados ao julgamento? Pinçaram de forma cirúrgica as declarações, escolheram a dedo os analistas e ganharam mais uma medalha. Essa edição vai entrar para a história ao lado daquela de 1989.

Impressionante que, em uníssono, todos os veículos da mídia hegemônica – os Marinho, Saad, Civita, Frias, Mesquita, Santos, Macedo, e seus companheiros regionais – não tenham, em nenhum momento sequer da cobertura sobre as acusações envolvendo o ex-presidente Lula, questionado as teses da acusação. Como pode o jornalismo que se auto-proclama isento, não ter trazido para o conjunto da sociedade algumas reflexões como, por exemplo, o porquê de a comunidade jurídica nacional e internacional (não me refiro à defesa, que claro vai sempre defender o seu ponto de vista, mas juristas eméritos, catedráticos do direito das mais variadas e renomadas instituições de ensino, advogados constitucionalistas de renome internacional) divergirem tanto sobre o processo em curso? Porque não deram espaço para que se estabelecesse um debate amplo sobre a teoria do domínio do fato? Eu tenho um leve palpite. Porque dar visibilidade as fragilidades e conflitos do campo jurídico em torno do assunto anularia o argumento que os próprios meios de comunicação estão usando para dar credibilidade à acusação: o de que o julgamento é eminentemente técnico.

Para a mídia, a politização é da defesa – esse argumento tira a credibilidade de qualquer declaração dada pelos advogados de Lula ou dos setores que estão criticando o judiciário. De outro lado, para a mídia o Judiciário tem sido irrepreensivelmente técnico, portanto isento. E assim as pessoas que estão na sala de jantar ou de estar se convencem de que Lula é culpado, o PT é culpado e a política é algo ruim.

Não sou cética. Tampouco sou otimista. Tento ser realista e olhar os processos políticos, sociais, culturais, econômicos da maneira mais racional possível. E por mais que eu tente evitar, os sentimentos também participam das minhas opiniões e decisões. Desde que nascemos, vamos construindo consciente e inconscientemente nossos valores morais, éticos, vamos moldando nosso ponto de vista a partir de nossas experiências e de nossas influências. E a mídia é uma influência e tanto para milhões de corações brasileiros.

Essa parcialidade da mídia e do Judiciário está construindo um exército de pessoas que perderam a capacidade de reflexão e de diálogo. Que não ouvem, não veem e não falam nada além do que lhes é imposto pelo noticiário. Como na icônica escultura dos três macacos sábios, mas às avessas. Está mais do que na hora de aguçarmos nossos ouvidos, abrirmos nossos olhos e fazermos com que ouçam a nossa voz.