No mês de julho, a Mídia NINJA acompanhou Guilherme Boulos, coordenador nacional da Frente Povo Sem Medo, em uma série de agendas com o partido Podemos, na Espanha, o que permitiu conhecer de perto articuladores que representam a luta popular do século XXI na Europa. A seguir, entrevista com Rafael Mayoral, deputado de Podemos e secretário de relações com a sociedade civil e movimentos sociais, que se dedica especialmente à luta por moradia, confira:

https://youtu.be/1hNu2LNAo7A
Mídia NINJA: Quais são os novos desafios que estão enfrentando nesse novo ciclo do Podemos?

Rafa Mayoral: Recentemente tivemos a assembleia de Vista Alegre e lá fizemos uma reflexão da nova fase que nos encontramos, Podemos nasce como uma resposta, uma necessidade de um espaço político eleitoral que rompesse com o bipartidarismo e que pudesse colocar a possibilidade de um novo projeto nacional em prática, um projeto popular, mas com uma lógica eleitoral, temos enfrentado uma gincana eleitoral a toda a velocidade, articular candidaturas de unidade popular nos municípios, enfrentando a convocação das eleições municipais, europeias e gerais, tudo junto nestes dois anos e agora precisávamos de aprofundamento e transformação, inclusive de Podemos, para criar raiz no território, para passar de uma máquina de eleição popular a uma máquina de construção popular, contribuindo com a construção social do novo projeto de país que queremos levantar e, aí sim, continuar aprofundando e avançando mais nas dinâmicas de protagonismo popular no processo político. É importante que o processo político não se limite apenas ao ciclo eleitoral ou agendas eleitorais, sem esquecer que é um elemento central, a retomada das instituições ou resgate da democracia como projeto político, mas o resgate da democracia por um lado é ser capaz de recuperar as instituições, mas tem que ser feito através de uma construção popular potente porque o que nós precisamos é a construção de uma nova institucionalidade que coloque no centro os interesses da maioria social e por isso não saímos do eixo esquerda-direita, porque dentro que foi a “esquerda” houve de tudo, pessoas comprometidas socialmente com os setores populares e pessoas que estiveram dentro do processo administrativo das empresas, portanto nessa disputa não queremos estar, porque nos define muito mais se formos capazes de ver os setores sociais envolvidos no processo político, e aí sim falamos um pouco quais são, eu acho que é um dos grandes desafios que temos: como construir um projeto para a maioria social em nosso país e a própria concepção de Podemos como um movimento popular para o resgate da democracia, como aprofundar a característica de movimento popular.

MN: Qual o lugar dos movimentos sociais neste lugar que você está pensando?

RM: Bem, nós temos que jogar por um lado com uma posição de diálogo, mas, ao mesmo tempo, temos que cuidar muito da independência dos movimentos sociais mas existe um campo de disputa importante como regime, porque a disputa do social se converte rapidamente em uma disputa política.

E aí é preciso aprofundar o diálogo com os movimentos sociais e o transcender, para falar do que é o movimento popular, como queremos articular esse movimento, que é algo que temos de fazer em conjunto, ser capazes de aprender com as experiências dos próprios movimentos sociais, colocar as botas e nos enfiar no barro da disputa concreta de território concreto, não?

Fizemos algo muito bom que foi a construção de um discurso que interpretava as dores da maioria social, de amplos setores da população e o articula como esperança, mas agora precisamos de uma prática política que dê crédito a esse discurso, neste momento já não é o discurso que fará crescer o Podemos mas precisamos de uma prática política que dê sentido às coisas que dizemos, a frase “a melhor maneira de dizer, é fazer”, vai ser clara, precisamos de um trabalho das instituições que seja claramente visível que estão comprometidas com esses setores em combate com as elites, mas não é suficiente com nossa gente que está nas instituições, precisamos trabalhar diretamente nos territórios com diferentes setores.

Neste momento já não é o discurso que fará crescer o Podemos mas precisamos de uma prática política que dê sentido às coisas que dizemos, a frase “a melhor maneira de dizer, é fazer”, vai ser clara.

MN: Como você vê a relação entre Espanha e América Latina? Semelhanças e diferenças.

RM: Existe uma lógica na América Latina, tanto no mundo,em que houve um momento de consenso em Washington de implementação das políticas neoliberais e uma resposta democratizadora no conjunto do continente e agora começa com Honduras e continua com Paraguai e vemos que existe uma onda neoconservadora que ataca os elementos essenciais das conquistas democráticas dos povos, mas isso vai aparelhado a algo que eu creio excepcionalmente perigoso para a democracia que é a retomada do poder político por parte dos milionários, estão substituindo o establishment por isso, isso tudo que está acontecendo na América Latina, que passou com PPK no Peru, na Argentina com Macri, Temer no Brasil e os países do norte, com Trump como presidente dos Estados Unidos e com Macron como presidente da França, existe uma crise do establishment, de representação, crise no sistema político e nos encontramos num momento que vai acontecer uma disputa entre governo popular, que articule os interesses dos setores populares ou um governo tomado diretamente por multimilionários para defender seus interesses contra uma maioria social através de uma reedição das políticas de Thatcher e Reagan adaptadas ao século XXI que estamos vivendo, mas bastante descarnada e que entra em conflito com os elementos mais essenciais da democracia.

É preciso ser útil, capazes de colocar na agenda política como programa de articulação popular a declaração universal dos direitos humanos, que tem uma virtude que é a indissociação dos direitos político-civis e dos direitos econômicos, sociais e culturais de uma mesma declaração como acordo para poder articular um modelos de sociedade sob medida dos seres humanos, creio que essa é a chave, porque a declaração universal dos direitos humanos não é um presente das elites dirigentes, senão que, precisamente, o resultado da vitória da humanidade sobre o fascismo e como mirar no futuro das pessoas que estão no centro das instituições políticas.

MN: Em relação ao Brasil, como é visto o processo do golpe e o avanço das reformas da previdência e trabalhista?

RM: Com respeito a América Latina, em Espanha só se quer falar de Venezuela. América Latina é preciso olhar com microscópio e não com telescópio, não existe uma visão continental e, evidentemente, a última coisa que querem contar é o que acontece no Brasil, mas Brasil entrou na agenda política espanhola no momento em que, depois da cerimônia de posse de Mariano Rajoy, começam a brotar casos de corrupção emergentes, que chicoteiam o Partido Popular nos quatro cantos, e decide fugir e, além do mais, o faz baixo uma consigna que dá ao conjunto de seus militantes o “é preciso esperar que passe o temporal” e ele [Rajoy] decide visitar seu amigo Temer, sendo o primeiro dirigente internacional que vai legitimar o golpe, essa é uma das questões que no momento ninguém se atreve a dizer algo assim pelo irrepresentável que é Michel Temer, por um golpe institucional, um golpe que vai contra as eleições populares e imediatamente abre uma agenda antipopular, de corte de direitos das maiorias sociais e que o que está em jogo é a retomada da institucionalidade política para aplicar medidas duras em defesa dos interesses das elites, e existe um ponto de conexão que são de presidentes marcados pela corrupção e políticas antipopulares, então, nessa situação, vemos um ponto de intersecção entre os dois governos justamente aí e a visita de Guilherme Boulos à Espanha era importante pra isso, se existe uma cumplicidade das elites acreditamos que é ainda mais importante que se trabalhe a fraternidade popular, a fraternidade dos povos que estão lutando contra um modelo que nega os direitos fundamentais, Temer se inspira na reforma trabalhista de Rajoy, mas a agenda de ataque à a aposentadoria foi colocada na mesa no Brasil, aqui na Espanha estão fazendo de maneira sossegada mas o objetivo é que as pessoas tenham que trabalhar depois de aposentadas, e é um projeto que nega a possibilidade de deixar de trabalhar ao alcançar a idade mínima de aposentar-se para poder desfrutar e isso que está acontecendo é um dos elementos de redistribuição do produto interno bruto fundamental, da distribuição de riquezas do país.

Recentemente saiu uma sentença, porque há alguns anos o PP fez uma anistia fiscal, enquanto nos momentos mais duros de crise, enquanto os pequenos e médios empresários e trabalhadores autônomos se arruinaram e eram comidos vivos pelos bancos e se afogavam, o Ministério da Fazenda de Rajoy impôs uma anistia fiscal que permitiria devolver o capital que tinham no exterior pagando 10% e desse total só conseguiram arrecadar 3% e agora foram condenados pelo tribunal constitucional, mas não terá efeito prático porque não conseguiram arrecadar esse dinheiro, não querem sequer dar a lista dos fraudadores, pouco a pouco se articula uma lógica de governo off shore, então, nos encontramos numa lógica onde tudo está permitido para as elites e existe uma crueldade com os setores populares inaceitável. São pontos de conexão que precisamos conversar, muitas diferenças mas as conexões são fortes. O interessante é que possamos falar, dialogar e aprender um pouco uns com os outros.

MN: Falando da importância que tem pra vocês ter trazido o Guilherme Boulos, como você enxerga a luta que se localiza em diferentes articulações e o papel que cumpre tanto os movimentos sociais como os atores dessa luta, como Guilherme por exemplo, e como acreditam que isso pode ser um ensinamento entre eles e Podemos?

RM: A nós também nos interessava a luta pelo território e a disputa pelo direito à cidade num momento em que as cidades estão se tornando um campo de batalha do abutres que querem se apropriar dela, e estão conseguindo, subindo o preço dos aluguéis, uma lógica de especulação imobiliária e as experiências do movimento popular no Brasil são interessantes para se conhecer e não para transplantar, e sim ver como se faz, como são as práticas, e a gente acha interessante a disputa da cidade. Em segundo lugar, como articular a lógica política partindo do movimento social, isso sim que nos interessava, ver quais reflexões os movimentos populares e sociais de Brasil estão fazendo sobre eles mesmos e ver como estão fazendo essa articulação, do social ao político e, além do mais, como a mobilização popular está jogando um papel principal na articulação política. Sim, nos interessa muito isso, aqui vivemos o momento mais grave da crise popular. No começo, quando não existia nenhuma ferramenta política social, mas é certo que tivemos agora um certo refluxo no conflito social e sim, queremos entender as lógicas usadas lá no Brasil e existem algumas questões que aqui ainda não estão na agenda política mas que lá no Brasil já estão e que podem vir pra cá. Foi falado muito das aposentadorias e pensões em nosso país, mas não falaram claramente e nisso até podemos agradecer a Temer [ironicamente] que ele deixa bem claro: ele quer que o brasileiro trabalhe até morrer, ele quer acabar com o direito à aposentadoria declarada na carta universal de direitos humanos, creio que aí existe um ponto de conexão, porque às vezes o que uns não se atrevem a dizer, outros se atrevem, e esse é um projeto transnacional das elites porque é um projeto de fundo golpista, porque é um projeto do capital financeiro.

Acho interessante comentar também que o próprio conceito de “Povo Sem Medo” nos resulta familiar, na praça da “Porta do Sol” um dos cartazes enormes pendurados dizia “viva la lucha del pueblo sin miedo” (viva a luta do povo sem medo) porque no fim o essencial para a construção do projeto das elites, a submissão dos setores populares, o elemento central é o medo, que ao mesmo tempo se transforma em impotência para afrontar o futuro e, diante disso, a chave é a construção da esperança entendida de forma coletiva, a capacidade para realizar a luta social assimétrica, para poder articular a luta dos de baixo fazendo frente ao que estão em cima e, para isso, a primeira coisa a se fazer é vencer o medo, a única maneira de vencer o medo é construindo esperança a partir do coletivo.

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