Por Hyader Epaminondas

Com a nova sequência chegando aos cinemas amanhã, hoje é um bom momento para revisitar o capítulo anterior. Em “Avatar: O Caminho da Água”, James Cameron volta a Pandora como quem mergulha de novo em águas conhecidas, mas redesenhadas por novas correntes. O diretor retoma a força estética do primeiro filme, ao mesmo tempo em que expande a mitologia com mais segurança, maturidade e precisão narrativa.

Depois de mais de uma década distante das telas, o mundo criado por Cameron renasce como um organismo vibrante que respira de forma mais profunda, movido pela potência simbólica da água, pela fluidez das relações familiares e pela constante tensão entre pertencimento e deslocamento. A imagem só alcança essa força porque está sempre a serviço da sensação, nunca do exibicionismo.

A grande virada deste segundo capítulo está na ampliação geográfica e espiritual de Pandora. Ao migrar da floresta para as regiões marítimas, a narrativa finalmente atinge a promessa inicial de construir um mundo verdadeiramente plural, vivo e ecossistêmico. A travessia rumo aos oceanos transforma a percepção visual e desloca o centro emocional da história para um lugar em que a própria lógica do filme se dobra à fluidez aquática. A água do oceano, salgada e sempre em movimento, funciona como metáfora para os ciclos de mudança, para os processos de crescimento e para a inevitabilidade das perdas. Nada permanece rígido, tudo se transforma de acordo com suas correntes.

Talvez o personagem mais surpreendente e emocionalmente complexo do filme seja Payakan, o Tulkun renegado, uma espécie análoga a uma baleia espacial. Cameron torna essa criatura marinha não apenas um elemento de construção narrativa desse planeta tão diverso, mas um símbolo da sensibilidade radical que rege Pandora. Os Tulkun representam a inteligência afetiva, a espiritualidade natural e a interdependência ecológica, conceitos inspirados em cosmologias Māori e traduzidos aqui para um organismo extraterrestre que é, simultaneamente, colossal e íntimo.

A relação estabelecida entre Lo’ak e Payakan explicita a principal operação simbólica do filme: aprender a ouvir o mundo. A água amplifica ecos, transmite histórias e conecta seres distantes. Lo’ak aprende a se ouvir através de seu vínculo com o Tulkun.

O espetáculo visual dos oceanos pandorianos, trabalhado com minúcia quase microscópica, é o verdadeiro protagonista da obra. Cameron transforma a paisagem em discurso. Cada pequena criatura bioluminescente, cada movimento de cardumes, cada textura vegetal submersa comunica algo sobre o equilíbrio delicado daquele ecossistema.

Ao escolher explorar essa vida marinha com tamanha profundidade, digna de um fã assumido das explorações submarinas, o filme se aproxima da tradição dos documentários ambientais e entrega ao público uma experiência sensorial que ultrapassa o cinema narrativo para algo mais imersivo, digno de um parque de diversões submerso. “O Caminho da Água” se deixa consumir como uma grande deriva subaquática, onde a imagem flui mais do que explica e onde o encantamento nasce da contemplação.

Fluxos, ecossistemas e a construção simbólica do oceano de Pandora

A sensação de imersão é tão intensa que parte do filme se comporta como uma visita guiada a um aquário alienígena, mas um aquário aberto, vivo e imprevisível. A realidade parece dissolver-se na superfície líquida e a fronteira entre ficção e natureza se torna tênue. A água cumpre, assim, sua função simbólica: desestabiliza, desloca e transforma. Ao entrar nos domínios dos Metkayina, a família Sully precisa reaprender a observar, respirar, nadar e existir. O oceano funciona como um processo ritualístico de iniciação e renascimento.

Ao dividir a atenção entre Jake, Neytiri e os filhos, Cameron cria um núcleo familiar amplo que reflete os temas de solidariedade, coletividade e herança. Neteyam, Lo’ak, Kiri, Tuk e Spider são correntes distintas que compõem um mesmo rio familiar. Cada um representa uma variação do tema do pertencimento e da identidade. É sobre a busca de Jake por um lar possível, mesmo quando tudo está em movimento. Sobre a tentativa de se manter inteiro em um mundo que vive em transformação.

A narrativa cresce quando coloca esses personagens em fluxo, mas também sofre com o afastamento involuntário de Neytiri, cuja força dramática é subutilizada ao longo da trama. Ainda assim, nos momentos em que ela retorna à ação, a personagem ressurge com uma energia quase vulcânica, como se emergisse das profundezas depois de um longo silêncio. Nessas passagens, o filme expõe territórios que poderia ter trilhado com maior equilíbrio, embora talvez seja a própria falta dessa harmonia que lhe dê potência, como ondas que ganham ritmo justamente por não serem regulares.

Por outro lado, o clã Metkayina é um dos acréscimos mais valiosos ao universo de “Avatar”. A construção cultural desse povo, inspirada em tradições oceânicas reais, oferece uma nova gramática visual e espiritual. Suas práticas de mergulho, suas tatuagens, seus rituais e o modo como entendem os oceanos expandem a lógica de mundo de Pandora e mostram a preocupação de Cameron em criar civilizações coerentes com sua própria forma de ver o mundo. A ausência do clã nas cenas finais não compromete o impacto inicial, mas cria um vazio perceptível que poderia ser resolvido em uma versão estendida.

Correntes internas: as tensões que moldam o futuro da saga

Mesmo com tantas potências, “O Caminho da Água” ainda tropeça na representação dos antagonistas humanos. As corporações exploradoras continuam sendo figuras unidimensionais, repetindo a crítica ambiental já presente no primeiro filme sem acrescentar novas camadas ou dilemas éticos.

Diante de um universo tão rico e de uma narrativa tão interessada em expansão simbólica, esses antagonistas funcionam como elementos rígidos em um filme que deveria fluir. O terceiro capítulo precisará resolver essa tensão, sobretudo agora que o conflito deixou de ser apenas a extração de recursos e passou a envolver a colonização direta de Pandora.

É por isso que a violência humana, fria, sistemática, maquínica, aparece como ruptura brutal desse mundo tecido por vínculos. A caça aos tulkuns não é apenas destruição física, é a tentativa de apagar a memória de um povo, de silenciar as vozes que sustentam um modo de existir. O conflito deixa de ser aventura e se torna denúncia: a ganância chega sempre como força de rasura.

Se o mar é abundância, ele também é limite. E nas cenas em que a água se fecha ao redor dos personagens, Cameron transforma o oceano em espelho da vulnerabilidade. O luto se derrama pelas ondas, sem pressa, sem teatralidade, até formar um lago silencioso que reorganiza tudo ao redor. Nesse momento, o filme abandona o épico e toca o íntimo de uma forma quase espiritual: a dor não é tratada como clímax, mas como reinício.

“Avatar: O Caminho da Água” é uma sequência que cresce na medida em que se deixa atravessar pelo símbolo central que lhe dá nome. A água molda o ritmo, a estética, as relações e até as fragilidades do filme. Ela dissolve, reconstrói, acolhe e ameaça, revela e oculta. Cameron entrega um filme que escorre diante dos olhos como um fluxo contínuo de imagens, emoções e símbolos.

O filme se encerra em um ponto de quietude que não é conclusão, mas preparação. A água recua, mas deixa marcas: cicatrizes cintilantes, abertas, insistentes. É um retorno que não apenas revive Pandora, mas a expande em múltiplas direções, preparando terreno para que as próximas sequências se aprofundem ainda mais nas correntes turbulentas que movem esse planeta extraordinário.