Fenômeno Tardezinha: gigante nos palcos, subestimada pela mídia

Mesmo sendo a maior turnê nacional da história do Brasil, a Tardezinha ainda recebe cobertura midiática limitada.

por Tamara Louise

Iniciada em 2015 a partir de uma reunião de amigos liderada por Thiaguinho e Rafael Zulu, a Tardezinha transformou-se em um dos principais cases de sucesso da indústria do entretenimento nacional. O que começou como um evento pontual evoluiu para a maior turnê já realizada no país, reunindo números expressivos de público, alcance cultural e impacto econômico.

Com o último show do ciclo atual marcado para o Autódromo de Interlagos, em São Paulo, a turnê se aproxima do encerramento mantendo uma trajetória consistente de crescimento de público e alta demanda por ingressos. O palco em 360 graus consolidou-se como uma de suas marcas registradas, contribuindo para uma experiência imersiva que reforça a dimensão coletiva do espetáculo.

Para além do impacto artístico, a Tardezinha apresenta resultados relevantes nos campos social e econômico. Estima-se que o projeto tenha gerado cerca de 100 mil postos de trabalho diretos e indiretos ao longo de sua trajetória. A iniciativa também deu origem à Escola Tardezinha de Música, que oferece aulas gratuitas no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, ampliando o acesso à formação musical em territórios historicamente marginalizados.

Foto: Wadson Henrique

Ao longo dos anos, o sucesso da turnê passou a ser mobilizado como instrumento de valorização do pagode. Durante as apresentações, Thiaguinho convida o público a se declarar “pagodeiro”, gesto simbólico que busca ressignificar um gênero historicamente associado a estigmas e frequentemente tratado como culturalmente menor. O projeto também atua em frentes como acessibilidade e diversidade, reunindo atualmente mais de 17 marcas parceiras.

Em termos numéricos, a Tardezinha já reuniu cerca de 1 milhão de pessoas, ultrapassou R$ 1,5 bilhão em receitas acumuladas ao longo de uma década e projeta aproximadamente R$ 300 milhões apenas em 2025.

O contraste se torna ainda mais evidente diante de apresentações de grande escala, como o show realizado no Parque Olímpico, no Rio de Janeiro, que reuniu cerca de 80 mil pessoas em mais de seis horas de espetáculo, sem que isso se traduzisse em manchetes ou ampla repercussão editorial.

Foto: Wadson Henrique

A baixa presença do pagode nos espaços centrais de legitimação cultural está associada a um processo histórico de hierarquização simbólica no Brasil. Expressões culturais de matriz africana ocupam, historicamente, um lugar ambíguo no consumo cultural do país: são amplamente consumidas, apropriadas e transformadas em produto, mas raramente recebem o mesmo reconhecimento institucional concedido a outros gêneros musicais.

Ao longo do tempo, práticas culturais negras passaram a ser valorizadas sobretudo quando dissociadas de seus territórios de origem ou de seus criadores. O consumo se expande, mas o prestígio permanece restrito. Essa lógica ajuda a explicar por que projetos ligados ao samba e ao pagode, mesmo quando atingem números inéditos de público e faturamento, ainda enfrentam resistência para ocupar espaços de destaque em premiações, editoriais culturais e plataformas de legitimação simbólica.

Além disso, diferentemente de outros estilos da música brasileira incorporados ao cânone cultural, o pagode permaneceu por décadas fora dos principais espaços de mediação institucional. Essa ausência contribuiu para que o gênero fosse tratado predominantemente como entretenimento de massa, e não como uma manifestação cultural complexa, mesmo diante de seu impacto social, econômico e simbólico.

Nesse contexto, a Tardezinha se consolida não apenas como um fenômeno de entretenimento de grande escala, mas como um projeto que tensiona hierarquias simbólicas ainda vigentes. Criada por dois homens pretos e liderada por um artista preto solo no palco, a turnê é sustentada por uma base fiel de fãs e por um impacto econômico robusto. Ainda assim, seu reconhecimento midiático permanece aquém de sua dimensão real, evidenciando como critérios históricos de legitimação cultural continuam operando de forma seletiva no Brasil.