Renda do petróleo e mapa do caminho: como evitar novas dependências?
Financiamento da mudança energética pode impulsionar o futuro do país, desde que não reforce velhos modelos econômicos
por Alessandra Cardoso e Cássio Cardoso Carvalho
O despacho do presidente Lula, que estabelece o prazo de 60 dias para que o governo construa diretrizes para um “mapa do caminho efetivo para uma transição energética justa e planejada, com vistas à redução gradativa da dependência de combustíveis fósseis no País”, deve ser comemorado em duas frentes.
No campo do multilateralismo climático, a medida reafirma o compromisso brasileiro com a construção de um roteiro global voltado ao abandono progressivo desses combustíveis. No plano doméstico, sinaliza o empenho para que o País encontre seu próprio caminho, a partir de suas especificidades, potencialidades e desafios internos.
Tanto no discurso do presidente durante a COP 30 quanto no teor do despacho, fica evidente que, internamente, o “jeito brasileiro” envolverá o uso da renda do petróleo como fonte de financiamento da transição para longe dos combustíveis fósseis. O despacho prevê, inclusive, a criação do Fundo para a Transição Energética, financiado justamente pela renda petroleira.
No entanto, algumas questões precisam ser consideradas para evitar que os resultados desse trabalho se convertam em uma licença para ampliar a exploração petrolífera em nome da transição energética. Ou, ainda, que levem à captura da renda do petróleo por uma lógica de catalisação do financiamento privado funcional à descarbonização, mas que, na prática, não contribua para a superação do padrão primário-exportador da economia brasileira, no qual o setor de Óleo & Gás permanece como peça essencial.
Quais estratégias de transição essa fonte de financiamento deverá sustentar e sob quais salvaguardas socioambientais? De que forma esse arranjo poderá contribuir para superar a dependência dos combustíveis fósseis também pelo lado da produção? A criação de um novo fundo é necessária? Se sim, qual seria seu diferencial e qual parcela da renda do petróleo deveria ser a ele destinada?
No que diz respeito ao uso da renda do petróleo, já se observa, no marco dos arranjos legais vigentes, um movimento de reorientação para a agenda climática por meio de fundos já existentes, como o Fundo Social do Pré-Sal e, a partir do próximo ano, o Fundo Clima.
No caso do Fundo Social, a recente regulamentação abriu amplo espaço de discricionariedade para a definição, ano a ano, das prioridades de alocação. Todas elas são, em tese, relevantes para que o País invista em políticas públicas estruturantes, entre elas ações de mitigação e adaptação, bem como iniciativas voltadas ao enfrentamento das consequências sociais e econômicas de calamidades públicas. Ou seja, em tese, iniciativas voltadas à transição energética já se encontram no seu escopo de atuação.
Já no caso do Fundo Clima, do orçamento recorde de R$ 42,4 bilhões (99,99% reembolsável) previstos no Projeto de Lei Orçamentária para 2026, R$ 31 bilhões virão da renda do petróleo. Desse montante, R$ 4 bilhões estão reservados ao EcoInvest, com o propósito de catalisar investimentos climáticos, sendo a transição energética uma das prioridades. Os recursos que ficarem sob gestão do BNDES já terão como possível destino o financiamento de investimentos privados orientados à transição energética. Em 2025, dos R$ 5,37 bilhões contratados com recursos do Fundo Clima, 88% foram destinados às áreas de “transição energética e climática” e de “desenvolvimento produtivo e inovação”, esta última, notadamente, para projetos de biocombustíveis.
Em síntese, a boa notícia é que, já em 2026, o governo destinará uma parcela significativa da renda do petróleo para financiar a transição energética, sem a necessidade de criação de um novo fundo. A má notícia vem junto: esses recursos — classificados no orçamento como Fonte 1145 (Aplicações para os recursos de petróleo de que trata o art. 46-D da Lei nº 12.351/2010 – Despesas de Capital) — virão da alienação do direito à apropriação do excedente em óleo da União. Isso significa uma nova forma de antecipar a renda de uma exploração futura, e não da exploração presente. Em 2025, esse mecanismo está sendo utilizado para o cumprimento de metas fiscais. Em 2026, por sua vez, corre o risco de reforçar a dependência da exploração também pela via da necessidade de financiamento climático.
Por essa razão, é fundamental que as questões aqui levantadas sejam consideradas no trabalho anunciado pelo governo brasileiro. A renda do petróleo é uma fonte de recursos importante, mas com prazo de validade cada vez mais curto. Ela deve apoiar uma estratégia de investimentos em setores portadores de futuro, capazes de conduzir à superação da dependência econômica, financeira e energética em relação ao petróleo, sem comprometer investimentos essenciais — em especial em educação — e a melhoria das condições de vida das gerações futuras.