“O samba é uma expressão genuína do povo”, diz o compositor Raul DiCaprio
Raul destaca desafios da cultura periférica, defende acesso à arte e reforça o papel social da música nas comunidades
Nascido e criado em Olaria, no subúrbio carioca, o compositor Raul DiCaprio, de 44 anos, tem se destacado no cenário do samba do Rio de Janeiro. Começou sua carreira artística muito cedo, frequentando o Cacique de Ramos, no seu bairro. Com mais de 120 músicas gravadas (veja algumas aqui no Spotify) — com praticamente todos os sambistas de sua geração — tem se tornado uma referência na criação de canções para novos grupos e artistas. Suas poesias transitam por diversos temas: desde questões afro até política e crônicas do cotidiano.
Embora querido por músicos e conhecido no meio, não tem visibilidade midiática e tampouco canta nas rodas da cidade. Como ele mesmo diz, é “mais de ficar no cantinho observando e no botequim papeando”. Uma de suas composições mais famosas, Pra Matar Preconceito, em parceria com Manu da Cuíca, completa dez anos este mês e se tornou um hino das mulheres negras.
Na entrevista à NINJA, o artista conta um pouco de sua história, atravessada pela revitalização da Lapa, no Centro do Rio, e pela transição geracional de um gênero tão próprio da cidade. Fala também das características do samba atual e da importância de os sambistas — segundo ele, em sua maioria de esquerda — se posicionarem politicamente nas rodas e na sociedade.
Por onde a música entrou na tua vida? Pela família?
Como na de toda criança dos anos 80: domingo, a vitrola tocando, minha mãe fazendo comida, e rolando um Agepê, uma Clara Nunes, um Zeca Pagodinho. Até então, música pra mim vinha do rádio, da vitrola, do disco. No Cacique de Ramos eu vi que ela nascia de pessoas, que podia ser executada ao vivo, e isso me impressionou. Quando descobri que o artista cantando era o autor daquela música, me fascinei. Sou o primeiro músico da família, apaixonado por músicas antigas, serestas, sambas de partido alto.
Devia ter uns 12 anos. A quadra do Cacique era usada por escolas da região, as crianças iam para lá jogar bola e soltar pipa. Como eu não era bom de bola, depois que vi, no canto, uma roda de samba se formando, larguei o futebol e fui ver o batuque. Renatinho Partideiro, que Deus o tenha, me chamou. Foi ele quem me deu o apelido, já com uns 17 anos: estávamos numa roda de partido alto e o filme Titanic estava no auge. No improviso ele mandou um verso me chamando de “DiCaprio”. Ficou.
Comecei a fazer parte organicamente, mesmo sem saber tocar nenhum instrumento. Aprendi olhando e crescendo no meio deles. Fui incentivado a tocar cavaquinho e violão.
E antes de viver de música, quando virou essa chave?
Foi orgânico. Do Cacique comecei a descobrir outras rodas pela cidade: Renascença, o pagode do Paulinho Bombeiro às quartas, roda da Tia Ciça, do Guanabara, do Seu Cláudio na Lapa, do Bar do Juarez. Era uma grande família. Ali comecei a compor e a fazer nossas próprias rodas, como no Beco do Rato. Somos uma geração inteira fruto desse movimento.
Conta um pouco da chegada dessa galera de hoje, que participou da revitalização da Lapa.
A revitalização começa lá em Santa Teresa, com Ivan Milanez, Renatinho Partideiro, Eduardo Galotti, etc. Depois, expulsos de lá porque começou a lotar, descem para a Joaquim Silva. Começam as rodas na rua, enquanto nasce o grupo Semente, com uma turma mais profissional e fechada. Essa geração toda se encontra ali ao mesmo tempo: João Martins, Lula Matos, Biro (do Galocantô). Muita gente de bairros diferentes vai convergindo para esse polo.
Quando os donos dos bares percebem que levávamos público — e portanto dinheiro — começam a pagar cachê. No início era pouco, mas logo entendemos o valor que agregávamos, e os cachês foram aumentando. Depois vieram nossos discos e a profissionalização.
Você vive de música hoje?
Não. Tenho renda de direito autoral, sou compositor, entra uma grana boa, mas meu ofício é ourives. Sou joalheiro: faço joias, chaves, amolo alicate, faço um monte de coisas. Esse lado artesão é a ebulição da arte dentro de mim. Crio joias à moda antiga: fundição, prata, ouro, corte, execução — nada de computador. E é arte também. Quando não é joia, é música. Enquanto faço uma peça, já estou compondo mentalmente. A arte está dentro de mim o tempo todo.
Qual música te “explodiu” mais?
Lendas da Mata, com João Martins. Apresentávamos sambas inéditos todas as terças no Beco do Rato. Um dia fizemos essa música na casa dele e levamos para a roda. A resposta do público foi imediata. Depois passou para o Renascença, numa roda do Renato Milagres, e aí se espalhou pelo Rio. Foi quando entendi que o que a gente fazia tinha retorno. Isso foi em 2006 — faz 20 anos no ano que vem.
E financeiramente, já que você não canta nas rodas?
Recebo pelo Ecad. Não me atrevo a cantar porque não tenho voz de cantor — seria um embuste. Fico no meu canto fazendo música. Sou da Warner Music; quando um artista quer gravar, fala com a editora. Eu nem vejo quanto é cobrado. Assim fico livre para criar, enquanto a editora cuida da parte comercial.
Suas parcerias são muitas. Fala um pouco delas.
Tenho parceria com muita gente: Juninho Thybau, Baiaco, Kiki Marcellos, João Martins, Inácio Rios, Mosquito, Moyseis Marques, Lula Marques, Diogo Nogueira, Leandro Fregonesi, etc. E também com a moçada nova: DG da Glória, Júlio Pagé.
Minhas melodias têm influência forte da minha família nordestina. Ouvi muito coco de embolada, ciranda, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Manezinho Araújo. No samba, Beto Sem Braço, muito regional, e Nelson Cavaquinho — tenho um quadro dele no quarto, olho e rezo como se fosse um santo. Amo aquela tristeza dele.
O samba hoje está muito melodioso e às vezes perde a referência do morro, do botequim. Quando faço um samba em que a pessoa, de cara, reconhece essa essência, sei que estou no caminho certo.
Nos seus temas aparece santo, crônica, política. O que mais te encanta?
A cultura afro. Modéstia à parte, sou um expoente no Rio nesse tema. A maioria das canções do Awurê sobre orixás é minha. Gosto muito de temas políticos e sociais — como Pra Matar Preconceito, que virou um hino das mulheres negras.
Há o momento fonográfico e o da rua, que virou uma grande indústria de entretenimento e sustenta muita gente: músicos, cozinheiras, artesãos. Nas plataformas, o samba não está tão em foco: é muita enxurrada de sertanejo, funk, etc. Mas na rua o samba está fervendo.
Isso é geracional?
Acho que é mais mercadológico. O mercado explora o que está em evidência. Não vejo isso mudando tão cedo. Mas, por outro lado, o samba vive um momento de ebulição: a cidade inteira tomada por rodas, aquecendo a economia.
Você quase não aparece, não está nas redes, não canta. Como concilia isso?
Sou como antigamente. Gosto de sentar no botequim e conversar. Sou contemplador da vida. Faço uma oração diária: “Deus me livre das coisas modernas.” Fui ter WhatsApp há cinco anos. Sou tradicionalista, gosto do devagar. Mudança abrupta me assusta. Nos sambas sou meio “periferia”: fico olhando de longe, servindo até de inspiração.
E sobre política e o papel do samba nisso?
O samba sempre denunciou: desde Getúlio, passando pela UNE, por Zé Kéti, João do Vale. Cresci ouvindo esses caras. O compositor capta o grito do povo e transforma em letra. Pra Matar Preconceito foi isso: pegamos o grito entalado das mulheres negras.
No bolsonarismo, muitas rodas pararam para discursos políticos — para conscientizar. Muitos políticos frequentam nossas rodas, como Freixo, Carlos Minc, Jandira. O samba e a esquerda são entrelaçados. Desconheço sambista que não seja de esquerda; se existir, não conheço.
Quais projetos estão rolando?
Música nova com o Arruda, outra com o Juninho Thybau e outra no disco do João Martins. Hoje tem singles, EPs, discos… e eu sempre entro. Graças a Deus, minha geração me procura para gravar.
Como vê a transição geracional, com tantos bambas se despedindo?
É uma missão difícil e fácil: difícil pelo tamanho deles; fácil porque crescemos no meio deles. Beth Carvalho, os pais do João e do Inácio, Zé Katimba, muitos outros. Aprendemos com eles. Temos nossas nuances modernas, mas mantemos a chama acesa. É orgânico. Parcerias novas surgem o tempo todo. O cenário é promissor. Tem roda de samba em tudo quanto é canto. É uma expressão genuína do povo.
E a mídia? Por que o samba não está mais no auge comercial?
É mercadológico. Nas ruas, o povo canta samba. Mas o mercado olha para o que está bombando nacionalmente. Mesmo assim, a pista prova o contrário: o samba está em alta e acontecendo em todos os bairros.
Como você lida com as plataformas digitais?
Com praticidade. É fácil acessar um disco. Mas, junto disso, vem o efêmero. As pessoas não têm paciência para ouvir um álbum inteiro. Eu gosto de rituais: quando gosto de uma faixa, ouço o disco inteiro, devagar, como no LP.
Nas plataformas sou como centro espírita: só escuto gente morta — Candeia, Aniceto, Jovelina, Nelson, Elizeth, Tom. Ouço meus parceiros quando estou com eles, mas no dia a dia vou para os antigos, porque é para chorar, entrar em catarse, me inspirar.
Como você se vê no futuro?
O compositor é sempre passivo: depende do artista estar gravando. Mas meus amigos são ativos: compõem, gravam, lançam, e isso me puxa junto. Eu sou paciente, fico no meu canto esperando — e sempre chega. Todo ano gravo pelo menos três músicas.
E a inspiração, como funciona?
Vem do nada: trabalhando, no ponto de ônibus, tomando banho. De repente tiro um papel, pego o celular e anoto um mote. Fico repetindo mentalmente para não esquecer. Depois trabalho a letra.
Composição é engraçada: pode ser tomando uma cerveja, conversando, sob encomenda, ou no molde antigo — você chega com uma primeira, eu faço a segunda. No WhatsApp é difícil, perde a essência da rua.
Tem um ditado: “Só vou beber ou fazer samba em casa no dia em que uma rua passar na minha sala.” De tanto que gosto da rua.