Amazônia como primeiro paciente: o prontuário que o Brasil revelou à COP30
Nos territórios, sintomas da emergência climática aparecem primeiro e mais intensamente, antes de virarem estatísticas
Iza Carvalho, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30
Na beira do Lago Tefé, no interior do Amazonas, não faz tanto tempo que a água deixou de ser confiável. Virou suspeita. De acordo com informações da InfoAmazonia, nas torneiras das casas, a água fornecida pelo Serviço de Água e Esgoto Autônomo (Seae) de Tefé chegava amarela, com gosto de ferrugem.
E isso adoeceu os moradores, que relataram diarreia quando a bebiam. Tanques foram lavados toda semana porque até as roupas ficavam amarelas. Para muitas famílias, o único confiável era a Unidade Básica de Saúde Lourival Pires, que passou a distribuir água potável enquanto a equipe médica tentava dar conta dos atendimentos que se avolumavam em plena crise hídrica.
A crise hídrica é um sintoma da emergência climática. E o sofrimento dos moradores, evidência de quem sofre os primeiros e mais intensos efeitos, são as populações mais vulneráveis. Em 2023, o Amazonas enfrentou a pior seca em mais de um século, com rios em níveis historicamente baixos, fumaça persistente e municípios inteiros em situação de emergência. Quando o rio recua, não é só o barco que encalha: é o acesso ao posto de saúde, à água potável, ao alimento, à escola, também são comprometidos. A crise hídrica é reflexo da crise climática, cujos sintomas se intensificam e se infiltram igualmente na rotina das comunidades.
E durante a COP30, mesmo com a conferência sendo sediada em um território onde estão evidentes os sinais da crise climática, líderes globais, com suas ações, demonstraram que ainda estão se perdendo ao adiar ações concretas e realmente eficazes. A conferência terminou “sem que a Amazônia, epicentro da crise, tivesse seus sinais incorporados em compromissos concretos”, segundo a cobertura da Sumaúma.
Governos e especialistas criticaram a ausência de prazos para o fim de combustíveis fósseis e metas efetivas de desmatamento, de acordo com o Poder360. O contraste é ainda maior quando se observa que o rascunho anterior das negociações havia sido mais rigoroso, como registrou a Agência Brasil/EBC.
Mas na perspectiva de avanços, vale realçar a criação do Plano de Ação em Saúde de Belém (BHAP, sigla em inglês), documento apresentado pelo governo brasileiro que em sua formulação leva em conta discussões anteriores que já vinham sendo apontadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS já fazem há anos). E que indicam que o prontuário de todo o planeta já está no alerta vermelho. O prontuário está aberto – mas os líderes que resistem, hesitam em lê-lo. O aquecimento global indica febre da terra. O mundo está doente, e isso não é metáfora.
O que as conferências internacionais tentam documentar, os serviços de saúde conhecem na prática e na rotina. Antes que a crise climática alcançasse status de “tema de cúpula”, ela já ocupava cadeiras em filas de espera, alterava o trabalho de agentes comunitários, médicos, enfermeiros, arquivistas e comunicadores locais. É dali, da fila que cresce e da escuta apressada, que nasce o que realmente sustenta qualquer política pública: alguém que cuida, alguém que entende o que vê e alguém que não deixa o registro desaparecer.
O colapso climático não chega ao território como conceito abstrato. Ele se manifesta no corpo das pessoas e no corpo da floresta. É o calor extremo que muda o horário das aulas, a cheia que não respeita mais o calendário, a seca que deixa o barco encalhado, a fumaça que invade casas e postos de saúde.
Na região, essa sensação de descompasso virou regra.
O pesquisador João Farias Guerreiro, doutor em Ciências Ambientais e professor da UFPA, descreve um cenário em que o clima sai do script, e arrasta junto o padrão de adoecimento.
Por décadas, explica João, o ciclo de doenças seguia dois grandes períodos ambientais: o tempo da cheia e o tempo da vazante. De dezembro a maio, com muita chuva e rios cheios, aumentavam as diarreias transmitidas pela água, as infecções respiratórias ligadas à umidade e os casos de malária, favorecidos pelas poças que se formam nas margens. De junho a novembro, com seca e fumaça das queimadas, cresciam as doenças respiratórias, as infecções intestinais ligadas à falta de água potável e os problemas de pele — especialmente em comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas.
Esse padrão continua existindo, mas de modo distorcido – as cheias e secas se prolongam ou se encurtam, deixam de ocorrer nos meses esperados e reorganizam os mapas das doenças. As cheias e secas se alongam ou se encurtam, deixam de ocorrer nos meses “esperados”, os rios demoram mais para subir ou demoram mais para descer. O que era sazonal vira uma espécie de estado permanente de alerta. Esse efeito já é reconhecido pelo Guia de Mudanças Climáticas para Profissionais de Saúde do Ministério da Saúde.
“Quando os ciclos dos rios se alteram, as doenças que dependem deles também mudam de comportamento”, sintetiza o pesquisador. Em outras palavras: a medicina de território sente primeiro o que só depois aparecerá nas estatísticas.
Profissionais de saúde, agentes comunitários e lideranças locais são, na prática, os primeiros sensores desse adoecimento coletivo. São eles que percebem a repetição de quadros respiratórios em dias de fumaça, o aumento de diarreias em períodos de estiagem, a chegada de doenças em “épocas erradas”. E boa parte desses sinais ainda passa longe dos grandes debates sobre clima.
A costa amazônica já saiu do lugar
Se os rios contam uma parte da história, a faixa costeira amazônica escancara outra: a de um litoral em transição acelerada.
A geógrafa Ponciana Freire de Aguiar, professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), estuda há décadas a dinâmica costeira na região, combinando dados meteorológicos, séries de satélite e modelos hidrodinâmicos. O diagnóstico é direto: o clima que organizava as marés, os ventos e as chuvas já não segue o padrão histórico.
O principal “motor” climático da região, a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), desloca-se para norte e sul de forma mais intensa e imprevisível. Quando permanece mais ao norte, a Amazônia recebe menos chuva e ventos mais fortes; quando desce demais, concentra precipitações fora de época. O resultado é um embaralhamento das estações: chove quando deveria estar mais seco; falta chuva quando se esperava cheia.
A combinação desses fatores ajudou a produzir, em 2024, uma das secas mais severas já registradas na região, com rios em níveis historicamente baixos, fumaça persistente e impactos sanitários significativos, como apontam estudos reunidos na Biblioteca Virtual em Saúde e análises sobre a estiagem histórica na Amazônia.
Na zona costeira, essa mudança climática se traduz em elevação do nível relativo do mar, erosão acelerada, marés mais altas e intrusão salina em rios e igarapés. Estudos apontam aumento do nível do mar na ordem de milímetros por ano desde a década de 1990. Parece pouco, mas, acumulado por décadas e combinado com ventos e ondas mais intensos, tem efeito concreto:
- comunidades do Marajó enfrentam água salobra por períodos prolongados;
- açaizais e manguezais recuam em busca de áreas menos salinas;
- praias que antes seguiam ciclos relativamente previsíveis de erosão e recuperação agora exibem recuos abruptos da linha de costa.
Em séries de 40 anos de imagens de satélite, a tendência mais ampla é clara: um litoral que recua – ainda que com oscilações – e responde de forma mais rápida a eventos extremos.
Há um paradoxo que se repete na fala de Ponciana: a Amazônia costeira é uma das regiões mais dinâmicas do planeta, mas ainda carece de instrumentos básicos de monitoramento. “Temos um dos maiores cinturões de manguezais do mundo e não temos uma bóia oceanográfica para acompanhar nossa costa; temos marés entre as mais altas do país e não temos marégrafos instalados de forma contínua”, lamenta. O resultado é um cenário em que o território grita — e o Estado ainda não aprendeu a ouvir esse grito em tempo real.
O pronto-socorro como barômetro climático
Enquanto oceanógrafos, geógrafos e geneticistas descrevem a “grande figura” da alteração do clima, quem trabalha nos postos e hospitais lida com o efeito microscópico dessa transformação: o sofrimento individual.
O que as bases científicas vão registrar mais tarde, nasce na fila de espera: fichas acumuladas nos dias de fumaça, surtos de doenças repentinos após enchentes, crianças que chegam com febre em meses que antes eram “tranquilos”.
Relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já não tratam a crise climática como um tema ambiental apartado da saúde. Eles mostram que as mudanças no clima reorganizam o mapa das doenças: agravam quadros respiratórios, aumentam riscos cardiovasculares, favorecem surtos infecciosos e deixam marcas na saúde mental. No Brasil, o Ministério da Saúde começa a responder a esse diagnóstico ao incluir o clima na agenda de vigilância e adaptação, produzir guias específicos para equipes do SUS e orientar que variações climáticas sejam consideradas variáveis de risco nos sistemas de vigilância epidemiológica.
Mas, na prática, quem antecipa esse movimento é o SUS da ponta: o agente que atravessa a comunidade, a unidade básica que recebe a criança febril, o hospital que acumula fichas de atendimento com diagnósticos recorrentes.
Informação como infraestrutura de emergência
Se o território percebe primeiro e o SUS registra na pele, falta responder a uma pergunta quase sempre invisibilizada: como essas evidências chegam, de fato, às instâncias que decidem políticas públicas?
É aqui que entra um trabalho que raramente ocupa manchetes, mas é decisivo nas emergências: a gestão documental e da informação. A arquivista e historiadora Karoline Dias, que atua no Ministério da Saúde, observa esse processo a partir de um lugar estratégico: o fluxo de documentos oficiais.
Para ela, o primeiro sinal de uma crise não aparece apenas nas imagens de desastres transmitidas em rede nacional. Surge, antes, no volume e no tipo de documentos que chegam à administração pública: ofícios de municípios pedindo ajuda, relatórios de vigilância epidemiológica, solicitações de insumos emergenciais, pedidos de reforço de equipes, laudos técnicos sobre desabamentos, enchentes, surtos.
“Quando urgências, relatórios de vigilância e demandas extraordinárias de estados e municípios começam a sair do padrão e exigir tramitação prioritária, sabemos que algo mudou na paisagem”, explica. A partir daí, o tempo vira variável crítica: um documento perdido, classificado de forma inadequada ou que circula em múltiplas versões pode significar falta de insumo, atraso em repasse de recurso, demora na mobilização de equipes — com impacto direto em vidas.
Karoline define o núcleo do trabalho arquivístico em poucas palavras: localizar rápido, garantir autenticidade, entregar no tempo certo. É a infraestrutura invisível das respostas emergenciais.
Os obstáculos são proporcionais à urgência: interoperabilidade entre sistemas, excesso de arquivos digitais, necessidade de preservação de longo prazo, indexação precisa, tudo isso sob pressão por velocidade e transparência. Em cenário de crise climática, essa pressão tende a aumentar.
Sem um arquivo confiável, o Brasil perde mais do que lembranças: perde a chance de reagir a tempo. É comprometer a capacidade do Estado de responder a emergências que se tornam mais frequentes e complexas.
O BHAP promete algo interessante: que as informações de saúde deixem de ficar presas em sistemas que não conversam entre si. Em vez de dados dispersos, uma memória comum — capaz de agir antes que a catástrofe aconteça, como consta em publicações oficiais do Ministério da Saúde e em registros da Biblioteca Virtual em Saúde.
Antes de agir, é preciso acreditar no que acontece
Se a saúde sente primeiro e a gestão documental organiza o rastro da crise, a comunicação define quem terá condições de compreender, checar e reagir a esses sinais.
Na Amazônia, essa disputa não é teórica — é concreta. A professora Marina Ramos Neves de Castro, da Faculdade de Comunicação da UFPA, pesquisa há anos comunicação quilombola, projetos de imagem e cultura e práticas comunicacionais em comunidades tradicionais. A partir desse trabalho, vê a crise climática como algo que não é apenas ambiental: é também uma crise de verdade e de circulação de sentidos.
A desinformação ambiental que chega à região é, em grande medida, importada: narrativas que minimizam eventos extremos, distorcem políticas ambientais, colocam em dúvida contaminações por mercúrio e poluição das águas ou atacam lideranças indígenas que denunciam violações. Essas mensagens não nascem na beira do rio — mas ganham força quando conseguem se territorializar, isto é, quando entram em circuitos de confiança locais, como grupos de WhatsApp da paróquia, rádios comunitárias, conversas no porto.
A resposta, no entanto, também nasce de dentro. Jovens que dominam o uso do celular e das redes atuam como verificadores informais; professores transformam boatos em material de análise em sala de aula; projetos comunitários criam redes cooperativas para checar informações e produzir narrativas próprias.
É nesse contexto que a educomunicação se torna ferramenta central. Não como uma pedagogia que “leva esclarecimento” a quem não sabe, mas como tecnologia social que reconhece que as comunidades já interpretam o território – e oferece meios para traduzir essa leitura em comunicação com alcance mais amplo.
Rodas de conversa intergeracionais em que avós narram ciclos de chuva e secas, crianças mapeiam áreas de risco próximas à escola, rádios comunitárias acompanham cheias e vazantes, jovens produzem vídeos sobre o calor extremo: tudo isso, quando articulado, compõe um sistema local de alerta mais rápido e aderente à realidade do que muitos aplicativos meteorológicos.
Para Marina, há um ponto que a COP30 ainda não levou às últimas consequências: não haverá justiça climática sem justiça comunicacional. Em outras palavras, não basta garantir acesso a dados; é preciso assegurar que os territórios possam produzir, checar e circular suas próprias narrativas sobre clima, saúde e futuro.
Projetos como os da Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e o programa Educom&Clima (USP/ABPEducom) mostram uma verdade concreta: o território opera como sistema de alerta mais rápido que muitos instrumentos oficiais. Educomunicação, assim, não é “ensino sobre mídia”. É soberania informacional. Sem ela, não há adaptação; sem verdade, não há política pública.
Sem registro, não há país
A crise climática tem sido tratada, muitas vezes, como uma questão de metas, gráficos e fundos internacionais. Mas, para quem vive na Amazônia, ela se apresenta de maneira mais direta: na água que invade a casa, na fumaça que entra pela janela da escola, na estrada que desaparece na lama, na falta de barco para chegar ao posto de saúde.
Entre o alerta comunitário e a negociação diplomática, há uma cadeia de trabalho que vai da visita do agente de saúde ao formulário de vigilância; do relatório de enchente ao ofício enviado ao governo federal; dos mapeamentos costeiros em satélite aos pareceres técnicos sobre erosão e intrusão salina; da reportagem comunitária à grande imprensa.
Essa cadeia é feita de escuta, ciência e arquivo. Sem profissionais que observam o território, sem pesquisadores que sistematizam evidências, sem gestores documentais que preservam e organizam registros, o país fica cego diante de sua própria história climática.
A COP30, realizada em Belém, colocou a Amazônia no centro do mapa mundial. Mas, para além dos anúncios oficiais, há uma constatação incômoda: o que o território vem registrando há anos ainda não foi plenamente incorporado às políticas de adaptação e proteção.
O prontuário vai permanecer
Conferências acabam, documentos perdem a manchete, governos mudam. O que permanece é o prontuário — do planeta e do país. Ele está nos arquivos físicos e digitais, nas fichas de atendimento do SUS, nas séries de satélite que evidenciam o recuo da linha de costa, nos cadernos das escolas ribeirinhas, nas gravações de rádios comunitárias, nas narrativas quilombolas, nos relatórios de emergência e nas pesquisas que cruzam clima, saúde e território.
A crise climática não espera consenso. Ela se escreve, em tempo real, no corpo de quem vive a Amazônia e nas estruturas que tentam cuidar, interpretar e registrar esse processo. Resta saber se, como país, seremos capazes de transformar esses registros em decisão — e de escutar o que já se repete no corpo do clima, muito antes dos números.



