Chuva de veneno: Quebradeiras de Coco denunciam avanço da pulverização tóxica no Pará e Maranhão
A violência não é nova — o que muda é a escala, a velocidade e a impunidade.
Por Ana Carolina Muccari e Catu Fernandes, para a Cobertura Colaborativa NINJA COP30
O veneno agora cai do céu. Nos territórios de babaçu da Amazônia Oriental, drones carregados de agrotóxicos sobrevoam roças, quintais e rios, derramando uma chuva tóxica sobre mulheres que, por gerações, sustentam a floresta com o trabalho de quebrar coco. A prática indiscriminada de agrotóxicos constitui violação de direitos territoriais e se tornou uma arma nas mãos do agronegócio que avança sobre comunidades tradicionais.
Em áreas rurais do Pará e do Maranhão, a pulverização deixou de ser monopólio de aviões agrícolas. Hoje, drones baratos, acessíveis e muitas vezes operados sem capacitação despejam agrotóxicos sobre casas, plantações, animais e fontes de água de quebradeiras de coco babaçu. A violência não é nova — o que muda é a escala, a velocidade e a impunidade.
A antropóloga Mônica Dias, que atuou na cartografia social, explica: “O drone virou arma. Ele isola famílias cercadas pelo agronegócio. Vai ficando impossível viver.” O que antes era “deriva química” agora é intimidação territorial.
O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) lembra que as quebradeiras já são Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial do Pará, segundo lei sancionada neste ano. O reconhecimento de seu papel na conservação da floresta é uma conquista, mas o movimento reforça que o que elas cobram é valorização do trabalho e apoio à cadeia produtiva — já que se colocam em risco diariamente, enfrentando ameaças constantes.
Durante um evento na COP, elas realizaram uma homenagem a duas mulheres do movimento que foram estupradas e brutalmente assassinadas no início de novembro, poucos dias antes da Conferência. Antônia Ferreira dos Santos, 53, e Marly Viana Barroso, 71, de Novo Repartimento, sudeste do Pará, eram mulheres extrativistas e estavam realizando a coleta dos cocos quando desapareceram. Foram encontradas horas depois por familiares.

Racismo ambiental e necropolítica
A professora Josilene Ferreira Mendes, da UFRA, nomeia o que acontece: racismo ambiental. As comunidades mais vulneráveis — indígenas, quilombolas, ribeirinhas e quebradeiras — são as que recebem a carga tóxica que o agronegócio jamais despejaria sobre bairros ricos ou regiões urbanas majoritariamente brancas. E ela vai além: “É necropolítica. O Estado sabe quem deve viver e quem deve morrer quando não fiscaliza”, afirmou.
O primeiro semestre de 2025 (janeiro a junho) registrou 100 comunidades atingidas por pulverização de agrotóxicos no Maranhão, segundo a Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA). No Pará, o problema cresce silenciosamente, sem dados oficiais e com pouco reconhecimento institucional.
As guardiãs do babaçu sob ataque
Cladeneusa Maria Bezerra, quebradeira desde os 10 anos, fala com a autoridade de quem carrega no corpo a história da floresta:
“Nós descobrimos que nosso trabalho é preservação do meio ambiente. Mas lutar é difícil. Muitas mulheres têm medo, porque os maridos criticam, porque há grileiros, porque o território é tenso.”
No Pará, mais de 150 mulheres estão organizadas — e mais de 300 nos quatro estados de atuação do MIQCB. Ainda assim, muitas enfrentam pressão doméstica para não participar da luta, vivem sob ameaça territorial e resistem com coragem cotidiana.

Cartografia social: quando o território fala
Para enfrentar o avanço do veneno, as quebradeiras recorreram a uma ferramenta poderosa: a cartografia social. Elas mesmas mapearam fontes de contaminação, problemas de saúde, mudanças nos rios, áreas de risco e locais onde drones sobrevoam.
A cartografia revelou água contaminada; impactos sobre quintais, hortas e criações; dores de cabeça; problemas respiratórios; queixas reprodutivas; medo constante; ansiedade; e sofrimento emocional. Esses dados se tornaram base para uma articulação inédita.
A antropóloga resume: “A cartografia social gera dados que o Estado não quer ver.”
Segundo a FAO, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, registrando 4 mil mortes por ano relacionadas à exposição direta por intoxicação — evidenciando a vulnerabilidade dos trabalhadores rurais e a necessidade de proteção permanente.
Da roça à COP: a carta que rompeu o silêncio
Isabel Levy, coordenadora executiva da iniciativa ArticulaFito/Fiocruz, destacou o apoio ao processo de cartografia que deu origem à Carta de São Domingos do Araguaia — “O grito das quebradeiras de coco pelo babaçu livre de veneno”. O documento foi entregue na COP, em novembro de 2025, ao presidente Lula, ao Ministério da Saúde e ao MDA.
A carta denuncia violações ambientais e territoriais e lista medidas urgentes:
- proibição da pulverização por drones no Pará;
- criação de uma Zona Livre de Agrotóxicos nos territórios das quebradeiras;
- encaminhamento e aprovação da Lei do Babaçu Livre;
- garantia de consulta prévia e suspensão da Hidrovia Tocantins–Araguaia;
- criação do Fórum Permanente das Quebradeiras de Coco do Pará.
A coordenadora destacou que é a primeira vez que um documento produzido por elas, a partir de seus próprios mapas e vivências, chega oficialmente ao governo federal em um espaço internacional.
“Babaçu livre de veneno” é luta pela vida — não é só por um fruto. É por um modo de existir. O babaçu sustenta alimentação, renda, cosmética, artesanato, rituais e memória. Ele preserva solo, água e floresta. E quem cuida do babaçu são elas — mulheres que carregam no corpo a história da Amazônia.

Principais reivindicações das mulheres
O grito das quebradeiras é também um chamado ao Brasil: não existe preservação da Amazônia sem proteger seus povos, suas mulheres e seus territórios tradicionais.
Elas exigem:
- proibição de drones com veneno;
- empenho na Lei do Babaçu Livre;
- criação de Zonas Livres de Agrotóxicos;
- direito à consulta prévia (Convenção 169/OIT);
- regularização fundiária;
- suspensão da hidrovia que ameaça rotas tradicionais;
- criação do Fórum Permanente das Quebradeiras de Coco do Pará.
A chuva química adoece o corpo e o território.
Para fortalecer essas lutas, foi criado em 1995 o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), unindo mulheres do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins pelo direito à terra e pelo reconhecimento profissional. Em 1997, foi aprovada a Lei do Babaçu Livre, garantindo às quebradeiras o direito ao livre acesso aos babaçuais e estabelecendo restrições à derrubada das palmeiras.
Durante a COP30, o movimento participou de diversos painéis na Blue Zone, Green Zone e Fundação Chico Mendes, além da grande manifestação do dia 15 de novembro — lutando pelo direito de existir e produzir em seus territórios.




