Carbono zerado? Joab Marques vai de bike à COP30 e mostra que é possível
Ultraciclista pedala 3.062 km até a COP30, neutraliza 0,7 t de CO₂ e coloca mobilidade ativa no centro da transição energética.
Por Bia Aflalo, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30
Belém (PA) virou rota de chefes de Estado, negociadores, lobistas e corporações durante a COP30, mas também recebeu quem escolheu chegar por lá, em outro ritmo. Enquanto segundo o Painel Climático da ONU, o setor de transportes responde por cerca de 23% das emissões globais de CO₂ relacionadas à energia, puxado principalmente por carros e caminhões movidos a combustíveis fósseis, um ultraciclista defende uma nova via ao atravessar o país com as próprias pernas (e pedais).
O paulistano Joab Marques, 43 anos, ex-contador, saiu de São Paulo no dia 28 de outubro de 2025, de bicicleta, rumo à capital paraense em um projeto apoiado pela Shimano – empresa fabricante de componentes para bicicletas – e por outras parceiras. Ao longo de 3.062 km, ele e a equipe calcularam a neutralização de 0,7 tonelada de CO₂, mais que o dobro da meta inicial de 0,3 t. Na prática, é como compensar algo próximo a uma viagem de carro de mais de 2,5 mil quilômetros num veículo movido a derivados de petróleo.
Em um momento em que o Brasil discute como reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) no transporte, que já responde por cerca de 11 a 14% das emissões nacionais (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa – SEEG, 2014), com grande dependência de óleo diesel e gasolina, a escolha de Joab é mais que esportiva: é um gesto político, conectado às pautas de transição energética e redução do uso de combustíveis fósseis nas cidades.
A jornada de Joab não resolve sozinha o déficit climático, nem atenua o a urgência e dever dos grandes emissores, entre eles as empresas de combustíveis fósseis responsáveis por uma fatia desproporcional do CO₂ lançado na atmosfera. Mas ela aponta um caminho: mostra na prática, que mobilidade ativa, transição energética e redução de combustíveis fósseis não são conceitos abstratos de sala de negociação. São decisões cotidianas, de política pública e de corpo, que começam quando alguém escolhe sair de casa de bicicleta.
Na Amazônia que recebeu a COP30, onde o aquecimento global já é vivido em forma de enchente, de calor extremo e de desigualdade, a imagem de um ultraciclista atravessando o país para neutralizar 0,7 tonelada de CO₂ pedalando é um lembrete direto de que é possível mitigar a crise climática também a partir de nossas escolhas individuais.
Assim como Joab, outros ciclistas também chegaram a Belém trazendo a mesma mensagem urgente: é possível e necessário repensar a forma como nos movemos num planeta em aquecimento. Cada um que cruza o país na força do pedal carrega, junto da própria história, uma convocação coletiva à transição energética, à redução dos combustíveis fósseis e à mobilidade ativa como direito.
Entre uma pedalada e outra, Joab dedicou um pouco do seu tempo para contar detalhes da sua viagem. Confira!
Mídia Ninja / Bia Aflalo – Quem é o Joab que chega de bicicleta à COP30 em Belém? Como a bike entra na tua história até virar ferramenta de trabalho e de luta climática?
Joab Marques – Eu sou o Joab, tenho 43 anos, e por muito tempo fui contador. A bicicleta entrou na minha vida como meio de transporte. Eu trabalhava em São Paulo, naquele trânsito intenso, e não aguentava mais passar horas em transporte público ou em um carro. Comecei a usar a bike como forma de mobilidade pra chegar no trabalho. Nunca imaginei que isso ia virar profissão.
A partir de 2021, eu saí da empresa em que estava, comecei a viajar de bicicleta, fazer um monte de coisa em cima da bike. Vieram apoiadores, patrocinadores. Hoje já pedalei em quatro países e em quase todos os estados do Brasil. É a minha primeira vez no Pará. A Shimano, que é uma das minhas patrocinadoras, trouxe a ideia: ‘E se a gente fosse pra COP30 de bicicleta, levantando a bandeira da mobilidade ativa?’. E aqui estou.
Bia – A gente tá numa COP que fala de transição energética, neutralidade de carbono, fim dos combustíveis fósseis. O setor de transportes é um dos grandes vilões nessa conta, e no Brasil ainda depende majoritariamente de gasolina e diesel (IPCC). Tu chegastes aqui justamente com um meio de transporte que não emite gases de efeito estufa no uso. Qual era a meta de neutralização de carbono do projeto e o que vocês conseguiram de fato?
Joab – A ideia inicial era neutralizar 0,3 tonelada de CO₂ ao longo do percurso. Só que, quando a gente fez as contas no final dos 3.062 km, chegou a 0,7 tonelada, setecentos quilos. A gente dobrou a meta e um pouquinho mais. Eu falo ‘a gente’ porque, embora eu seja o cara que pedala, tem muita gente por trás: pessoal da Shimano, e uma galera acompanhando os dados, medindo tudo.
No fundo, o que isso mostra é que a bicicleta é uma ferramenta real pra essa pauta. Não é só ciclovia de fim de semana. É mobilidade, é energia limpa, é menos CO₂ na atmosfera.
Bia – Quando a gente compara, a diferença é brutal. Estudos apontam que uma bike emite algo como 20g de CO₂ por quilômetro, considerando toda a cadeia, enquanto um carro convencional passa facilmente de 250g de CO₂ por quilômetro rodado – conforme estimativa do projeto Our World in Data. Se a gente pensa em escala, em política pública, isso é transição energética na vida real. Como essa conversa apareceu ao longo do teu trajeto?
Joab – A primeira reação de muita gente era: ‘Você tá pagando promessa?’ (risos). Eu explicava: ‘Não, tô indo pra COP, onde o mundo inteiro tá discutindo preservação do meio ambiente, aquecimento global, e eu escolhi ir de bicicleta porque ela já ajuda nisso’.
Mas a maioria ainda enxerga a bicicleta como esporte ou desafio. Aí eu preciso repetir várias vezes: ‘Tem o desafio? Tem. Tem esporte? Tem. Mas, nesse projeto específico, a gente tá levantando a bandeira da mobilidade ativa, de deixar o carro, deixar os combustíveis de lado e usar outras opções.
E tem um detalhe: nas grandes cidades, muitas vezes a bicicleta é o veículo mais rápido. Eu moro na Grande São Paulo e uso bike todos os dias, não só pra viajar. É a forma mais rápida, mais limpa e com custo quase zero. Às vezes, com meio litro d’água, você vai longe e volta.
Bia – Hoje a gente ouve muito falar em “neutralidade de carbono”, em metas pra 2050, em coalizões que prometem cortar 70% das emissões do transporte no Brasil (CEBDS). Mas, na cidade concreta, sem ciclovia, sem bicicletário, sem respeito ao trânsito, isso não se sustenta. Como tu enxergas o papel das políticas públicas nessa virada?
Joab – Eu percebo que a bicicleta já tá aí, nas ruas. O que falta é o poder público acompanhar. A gente precisa de ciclovia, ciclofaixa, educação no trânsito pra que motoristas tenham empatia, saibam dividir o espaço. Precisa de bicicletário em lugar público e privado, pra pessoa chegar e ter onde guardar a bike. Não adianta você criar uma ciclovia maravilhosa se, quando o ciclista chega, não tem onde deixar a bicicleta com segurança.
Tem também a infraestrutura de manutenção. Em São Paulo, por exemplo, existe um projeto chamado “Mão na Roda”, onde a pessoa aprende de graça a cuidar da própria bicicleta. Isso é inclusão. Mas ainda é pouco. Algumas peças de bike têm preço alto porque são importadas, têm carga tributária enorme.
Eu defendo incentivo fiscal pra baratear esses produtos, aumentar o acesso. Se a gente quer que a bicicleta seja parte da transição energética, o Estado precisa tratá-la como política de mobilidade, e não como hobby.
Bia – A tua rota foi por rodovia, atravessando vários estados. A infraestrutura que não serve pro ciclista, também não serve pro pedestre que mora às margens dessa BR. O que você viu pelo caminho? Como percebeste a infraestrutura urbana pra mobilidade ativa no trajeto?
Joab – Vi muitos desafios. Nenhuma das rodovias que peguei foi pensada para ciclistas e nem pros moradores que vivem ali na beira da estrada. Em vários pontos, eu ficava pensando: ‘Como essa pessoa sai de casa pra ir até o comércio do outro lado, se não tem acostamento e as carretas passam em alta velocidade, sem respeitar o limite?’.
Às vezes, o morador tem que atravessar pelo mato ou dar uma volta de meia hora a mais porque simplesmente não dá pra cruzar a rodovia. Não foi feito pra ele. E mesmo nas cidades, quando faz ciclovia, muitas vezes não tem manutenção: sol, chuva, carro passando, buraco… vira uma armadilha.
Outra coisa que vi muito foi moto e carro usando a ciclovia como atalho, estacionando em cima. Isso mostra que a cultura da mobilidade ativa ainda é muito desrespeitada. A bike aparece nos planos, em documentos, mas não é prioridade real de desenho urbano.
Bia – Belém é uma capital amazônica onde o uso da bicicleta como modo de transporte já é bem presente, especialmente entre populações de baixa renda, mesmo com toda a precariedade de infraestrutura. Como foi a tua chegada ao Pará e a recepção na cidade da COP30?
Joab – A minha recepção no Pará foi incrível. Eu já fui pra vários lugares, e cada lugar tem seu jeito, mas aqui eu senti uma receptividade muito grande. Desde a região de Moju, o pessoal já vinha pedalando comigo, me acompanhando.
Quando cheguei perto do aeroporto e vi a placa ‘Bem-vindo a Belém’, quis ter um momento sozinho. Parei, peguei a foto da minha mãe, que eu sempre levo comigo, e fui agradecer. Aí não teve jeito: chorei. É um trajeto difícil, a estrada e o clima mandam em você. Se venta forte, se chove, se faz muito calor, isso muda todos os planos. Chegar aqui foi a sensação de: ‘Deu certo. Mais um deu certo’.
Agora eu tô curtindo a cidade: conhecendo os lugares, indo nas ações da bicicleta, comendo comida típica… Descansando ativamente. No dia seguinte à chegada, já pedalei 80 km, hoje fiz 60 e ainda tem mais coisa pra fazer.
Bia – A gente tá numa COP em que se fala de fim da era dos combustíveis fósseis, de transição justa, de justiça climática. O teu corpo foi o motor que te trouxe até aqui. Que mensagem tu deixas pra quem tá assistindo essa cobertura e tentando entender o que mobilidade ativa tem a ver com crise climática?
Joab – A mensagem que eu sempre repito é: acredita no teu sonho, no teu propósito, na tua ideia, e não deixa o sistema apagar o que você acredita. Quando comecei a fazer isso, muita gente achou que eu tava ficando louco. Eu tinha um bom emprego, um bom salário, e abri mão pra pedalar.
Eu fiz isso pra mostrar que, se você acredita no seu potencial, muita coisa é possível. Eu já tive carro, hoje não tenho mais. O que me levou mais longe foi uma bicicleta. Foi a bicicleta que me levou a quatro países, que me fez atravessar quase todos os estados do Brasil, que me trouxe até a COP30.



