Carimbó: quando o tambor amazônico toca pela floresta e pelo futuro
Mestres e jovens utilizam instrumentos de manejo ancestral para preservar a floresta e transmitir saberes.
Por Rafaela Collins
A COP 30 transformou Belém em epicentro das discussões climáticas globais. Líderes, negociadores e cientistas circulam entre pavilhões e plenárias, discutindo números, metas, artigos do Acordo de Paris e modelos de descarbonização. Mas, a poucos metros de onde o mundo fala sobre futuro, outro tipo de conhecimento também pulsa, aquele que nasce dos pés na terra, das mãos que moldam tambores e das vozes que cantam para o rio.
Neste outro território, ancestral, sonoro, coletivo, está o carimbó, patrimônio cultural imaterial do Brasil e uma das expressões mais potentes da relação entre cultura, natureza e sustentabilidade. E é aqui que entra o Mestre Nego Ray, Mestra Nazaré do Ò e tantos outros guardiões e ponte entre gerações que carregam, cada um a seu modo, o pacto do carimbó com a floresta em pé.
O tambor que não derruba árvores
No carimbó, nada é por acaso. Cada gesto, cada canto e cada instrumento carrega uma filosofia amazônica de manejo sustentável. O principal símbolo disso é o curimbó, tambor escavado manualmente em troncos caídos, nunca em árvores derrubadas. A madeira nunca pode ser retirada viva. É o tempo da mata que decide quando um tronco está pronto para virar música. “É assim há muitas gerações. A floresta ensina. O carimbó só acompanha”, sabedoria que a Mestra Nazaré do Ò transmite aos seus discípulos.
As maracas, por sua vez, são feitas de sementes naturais, como murumuru, cuieira, ouriço ou jarina. As roupas são de fibras, palhas, tecidos reaproveitados. Os adereços vêm do território, não de grandes cadeias produtivas, fomentando a economia que há pouco tempo passou a ser intitulada de “criativa”, mas que é praticada há tempos pelos defensores da cultura popular paraense. Essa materialidade faz do carimbó um exemplo vivo de bioeconomia tradicional, anterior a qualquer conceito moderno. É sustentabilidade na prática, antes do nome existir.
Pesquisas recentes mostram que esse modo de viver também moldou a própria Amazônia. Povos originários e comunidades tradicionais manejam a floresta há milhares de anos, deixando caminhos, roçados, marcas de uso, sementes plantadas que hoje chamamos de biodiversidade. O carimbó nasce exatamente dessa linhagem.
Mestre Nego Ray: o guardião do templo sagrado da Vila Sorriso
Nenhuma reportagem sobre carimbó e sustentabilidade pode existir sem Mestre Nego Ray, figura lendária de Icoaraci. Há 35 anos, ele mantém o Espaço Cultural Coisas de Negro, conhecido nacionalmente como “o templo sagrado do carimbó”. Ali, todos os domingos, o carimbó urbano ganha vida, pulsa, gira, ecoa histórias.
Filho dos “zimbas” de Icoaraci, as rodas tradicionais da Vila Sorriso, Nego Ray cresceu entre tambores, festas de boizinhos, rodas de carimbó ao ar livre e o som das comunidades ribeirinhas.
Autodidata, ainda adolescente começou a fabricar instrumentos, a partir de materiais reaproveitados. Fez curimbós, maracas, tambores de boi. Moldou sons que contam histórias. Sua prática sempre foi sustentável por necessidade e por cosmovisão.

Sempre foi, também, resistência e hoje, é modelo. O trabalho de Nego Ray demonstra que cultura popular não é entretenimento: é política ambiental, é educação, é justiça climática. Ele inspirou toda uma geração, inclusive aquela que hoje conduz o carimbó ao diálogo com o mundo, como o grupo de carimbó Batucada Misteriosas, que nasceu no ponto de cultura do mestre.
Mestre Nazaré do Ó: a força ancestral que ecoa a urgência da floresta
Se Nego Ray representa o guardião da continuidade, Mestre Nazaré do Ó é a força feminina da ancestralidade que sustenta o carimbó como prática comunitária e espiritual. Sua trajetória, marcada por liderança, ensino e resistência, insere o carimbó num contexto ainda mais profundo, o da preservação dos saberes amazônicos, que só existem porque a floresta existe.
Nazaré do Ó reforça que o carimbó é uma pedagogia ambiental. A cada oficina, a cada roda, a cada canto, ela ensina as relações entre rio, floresta, mulher, semente, ciclo lunar, pesca, plantio, cura e dança. E com toda esta pedagogia vem há mais de 40 anos resgatando jovens da periferia tendo a arte como ferramenta educacional e social.
Defensora de políticas públicas em prol da manutenção da subsistência humana dos mestres de carimbó, ela defende a riqueza que cada sábio da cultura popular é uma fonte inesgotável de saberes .“Os mestres carregam a memória. Os jovens carregam o futuro. A floresta é o elo entre nós”, costuma dizer.
Na COP 30, onde se fala tanto sobre clima, finanças, carbono e mecanismos internacionais, a fala de Nazaré é um lembrete de que não existe justiça climática sem quem guarda os territórios. E a cultura é uma forma de guarda, na retaguarda da existência humana.
Luizinho Lins, o historiador que traduz o passado para o futuro
Quem vê Luizinho Lins tocando banjo não imagina o tamanho do repertório que ele carrega. Historiador, pesquisador, músico e carimbozeiro, ele dedica a vida a estudar ritmos amazônicos e a resgatar a história dos instrumentos que sustentam essa cultura.
Luizinho explica que o banjo amazônico é uma recriação afro-amazônica, feita com engenhosidade comunitária por meio de panelas de pressão, latas, chapas de raio-X e garrafas PET. Instrumentos reinventados com criatividade e sustentabilidade. “O carimbó é um instrumento de educação ambiental. O carimbozeiro vê o ser humano e a natureza como parte da mesma matriz”, diz Luizinho.
Seu trabalho conecta quilombo, floresta, periferia e música e demonstra como a sustentabilidade também se expressa na inovação popular.
A ponte entre gerações: o salvaguarda Alex Launé
Se os mestres plantaram as sementes, é a juventude que as faz florescer. E é aqui que entra Alex Launé, arte-educador, percussionista, mestre de bateria e fundador do projeto Anjos da percussão, que por meio da musicalidade tira jovens em situação de vulnerabilidade de situação de risco. Conhecimento que muitas vezes se tornou fonte de renda, afinal, A relação entre trabalho e sustentabilidade é intrínseca, pois a sustentabilidade no ambiente de trabalho envolve a preservação ambiental e o bem-estar social, buscando um equilíbrio entre as esferas econômica, social e ambiental do tripé da sustentabilidade, feito que o carimbó proprciona desde sempre.
Launé já integrou cordões de bicho, grupo de capoeira e garantiu a sobrevivência do carimbó junto com outros mestres e salvaguardas, quando essa manifestação era encarada como crime contra a ordem. Todas estas trabalham a relação harmônica e respeitosa do homem com a natureza. Na atualidade, ele faz parte do mais novo projeto musical no segmento, integrando o Batucada Misteriosa, um coletivo que reúne jovens periféricos, estudantes, artistas e herdeiros diretos dos mestres carimbozeiros.
Alex e o grupo trabalham exatamente no ponto de encontro entre a tradição e a reinvenção. O método é simples e profundo, por meio do aprender com os mestres, respeitar seu território, compreender a origem dos instrumentos e, ao mesmo tempo, criar novas identidades musicais dentro do carimbó.
Batucada Misteriosa nasce da escuta e da continuidade. E demonstra na prática que preservar cultura é preservar o futuro. Os jovens aprendem a fazer curimbós com troncos caídos, a costurar indumentárias de reaproveitamento, a usar sementes e fibras da floresta, a reconhecer a música como território e o território como filosofia de vida. Na COP30, esses jovens representam o que o mundo tantas vezes esquece: o conhecimento ambiental já existe e ele dança carimbó.
Carimbó como ferramenta de justiça climática
Toda a poética do carimbó é sobre justiça climática. Não a justiça dos acordos multilaterais, mas a justiça que nasce da vida cotidiana, da relação íntima com a terra e da compreensão de que a floresta não é recurso e sim parentesco.
O carimbó preserva modos de vida de baixa emissão, usa materiais naturais e reaproveitados. transmite saberes de manejo tradicional, reforça identidades territoriais, protege a floresta porque depende dela, educa sobre ciclos, tempos, limites e abundâncias.
Num mundo que discute tecnologias caras para sequestrar carbono, o carimbó lembra que existe uma engenharia climática milenar, o manejo indígena e comunitário da Amazônia. A floresta em pé é, há séculos, condição de existência dessa cultura, que por sua vez, é uma das razões pelas quais a floresta ainda está em pé.
Quando a COP 30 encontra o curimbó
Ao trazer a COP 30 para Belém, o mundo se aproxima das soluções que há muito tempo vivem aqui. O carimbó é uma delas! Em uma conferência marcada por debates sobre transição energética, adaptação e financiamento climático, o carimbó oferece respostas que não cabem em planilhas, mas cabem na vida, lembrando que a sustentabilidade não é um projeto futuro e sim, um legado vivo.
E, quando Mestres e salvaguardas se colocam como guardiões desse legado, a Amazônia afirma ao mundo que não existe clima sem cultura e não existe futuro sem quem sempre soube cuidar da terra.



