por Nicole Grell Macias Dalmiglio

Os debates que marcaram a COP30, em Belém (PA), expuseram um clima crescente de tensão entre as agendas oficiais de transição climática e as críticas vindas dos povos da Amazônia, de movimentos sociais e de representantes de instituições públicas como o Ministério Público Federal (MPF). A cada painel, audiência pública e evento paralelo, ficou evidente a distância entre a narrativa institucional, que celebra metas de descarbonização e anúncios de financiamento verde, e a realidade vivida por comunidades que têm seus territórios diretamente impactados por essas políticas.

Nesse contexto, a expressão “colonialismo verde” despontou por diversas vezes. O termo, que já circulava entre pesquisadores e organizações de base, ganhou força durante a Conferência porque traduz uma percepção cada vez mais incontornável: muitas das propostas classificadas como soluções climáticas reproduzem lógicas históricas de expropriação, exclusão e controle territorial. Para as comunidades amazônicas, essas iniciativas chegam como decisões formatadas fora do território e carregam implicações diretas para seus modos de vida, seus direitos e sua autonomia.

Lideranças indígenas alertam que a linguagem da transição ecológica não pode servir como justificativa para impor restrições ao uso tradicional da terra, criminalizar práticas culturais ou transformar a floresta em uma mercadoria destinada ao mercado de carbono. No primeiro dia de atividades do estande do Ministério Público Federal na Zona Verde da COP30, em 10 de novembro de 2025, essas críticas apareceram de forma direta.

A liderança Auricélia Arapiun denunciou que projetos de créditos de carbono têm sido apresentados às comunidades sem Consulta Prévia, Livre e Informada, por meio de contratos de décadas redigidos em linguagem técnica “para enrolar os parentes”. Já a pesquisadora Verena Glass questionou como populações tradicionais podem decidir que, “daqui a cinquenta anos, o carbono da floresta pertencerá a uma empresa estrangeira”, evidenciando a assimetria que estrutura essas negociações. Para essas vozes, a economia verde não só amplia a presença de empresas e fundos financeiros nos territórios, como também introduz novas formas de vigilância, monitoramento digital e controle técnico sobre áreas ancestrais, reeditando, sob outro nome, lógicas antigas de expropriação.

Política pública baseada em modelo colonialista

As críticas emergiram de forma contundente também entre representantes do Estado brasileiro em encontros tanto pré-COP30 como no decorrer da conferência. Realizado em Belém como atividade preparatória para a COP30, em 20 de outubro, o evento  MPF na COP30 foi marcado por debates que já incorporavam a pauta da justiça climática e das persistências coloniais na formulação das políticas ambientais.

À ocasião, procuradores ressaltaram que o país atravessa um cenário delicado, em que políticas climáticas vêm sendo implementadas sem o devido debate público e sem mecanismos que assegurem a participação efetiva das populações afetadas, sobretudo aquelas historicamente vulnerabilizadas.

O procurador regional da República Felício Pontes Jr. destacou que a Amazônia se tornou palco de “um choque entre dois modelos de desenvolvimento: um predatório e um socioambiental”, sintetizando a disputa estrutural que atravessa a região. Para a procuradora Eliana Torelly, os desafios de assegurar direitos diante dessas políticas são “extremamente árduos”, especialmente quando propostas governamentais respondem mais a pressões internacionais do que às necessidades concretas das comunidades locais. Já o procurador Paulo Thadeu Gomes da Silva classificou esse processo como expressão de uma “colonialidade interna”, apontando a reprodução doméstica de mecanismos de controle e desigualdade que perpetuam formas de exclusão dentro do próprio país.

Lideranças indígenas alertam que a linguagem da transição ecológica não pode servir como justificativa para impor restrições ao uso tradicional da terra, criminalizar práticas culturais ou transformar a floresta em uma mercadoria oferecida ao mercado internacional de carbono. Em vários depoimentos, apontaram que a economia verde vem ampliando a presença de empresas e fundos financeiros que, sob o discurso da proteção, estabelecem formas mais sofisticadas de vigilância, monitoramento digital e controle técnico sobre territórios ancestrais. Assim, políticas de compensação ambiental e programas de créditos de carbono começam a reproduzir, sob nova roupagem, a mesma lógica que historicamente subordinou povos originários a interesses externos.

Já o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou, em 11 de novembro de 2025, uma nota em que acusa o Tropical Forest Forever Fund (TFFF) de reforçar um “colonialismo verde” sobre a Amazônia. Segundo o movimento, anunciado às vésperas da COP30, o programa transforma a floresta em ativo financeiro e evita enfrentar as causas centrais da destruição ambiental, como o avanço do agronegócio, a grilagem e a violência no campo. O MST afirma que a iniciativa ignora a autonomia de povos indígenas e comunidades tradicionais e reproduz um modelo de governança ambiental alinhado aos interesses do Norte Global. Para o movimento, enfrentar a crise climática passa por romper com a financeirização da natureza e garantir protagonismo às comunidades que vivem e defendem o território.

Padrão se repete globalmente

À medida que a conferência avançava, tornava-se evidente que o debate sobre colonialismo verde não diz respeito apenas à Amazônia, mas ao modelo de transição energética adotado globalmente. A corrida por eletrificação nos grandes centros urbanos europeus, frequentemente apresentada como exemplo de compromisso ambiental, depende diretamente da ampliação da fronteira de exploração em territórios indígenas e comunidades tradicionais do Sul Global.

O caso da Argentina é emblemático. No Triângulo do Lítio, que abrange Jujuy, Salta e Catamarca, comunidades Kolla e Atacama denunciam há anos a apropriação de salares por mineradoras internacionais interessadas em suprir a demanda global por baterias de carros elétricos. A extração exige volumes imensos de água em regiões marcadas pela escassez hídrica, contamina bacias hidrográficas e avança sobre territórios sem processos adequados de consulta (Fernández, 2023). Enquanto governos europeus anunciam metas ambiciosas de mobilidade elétrica, os povos originários da região afirmam que estão pagando o custo social e ambiental dessa transição que se apresenta como limpa apenas no consumo.

Esse padrão se repete em outras regiões do continente e encontra eco na Amazônia. A COP30, realizada justamente no coração da floresta, escancara a contradição: enquanto o Norte Global reivindica práticas sustentáveis, o Sul continua a ser pressionado a abrir suas terras, seus minérios e sua biodiversidade em nome de metas internacionais que raramente reconhecem a centralidade da autodeterminação dos povos que vivem nesses territórios. Por isso, movimentos sociais e organizações indígenas afirmam que a conferência se tornou mais do que um espaço técnico de negociação – é um terreno político onde se disputa quem tem autoridade para definir o futuro da Amazônia. E, para essas comunidades, qualquer solução climática que ignore direitos territoriais, formas próprias de manejo e a participação direta dos povos da floresta não pode ser chamada de solução. A COP30 revela que a disputa climática é, acima de tudo, uma disputa por poder, por narrativa e por soberania.

Não há justiça climática sem justiça territorial

Em paralelo às discussões oficiais, a Cúpula dos Povos, encerrada em 16 de novembro de 2025 na UFPA, ampliou a denúncia. Em sua declaração final, mais de 400 organizações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e urbanas afirmaram que a COP30 está sendo utilizada para legitimar um novo ciclo de espoliação: o neocolonialismo verde. Para os movimentos, a transição energética global tem sido instrumentalizada por países ricos e corporações para acessar terras, recursos minerais e conhecimentos tradicionais, agora transformados em “ativos climáticos”.

A declaração da Cúpula é explícita ao afirmar que “não há justiça climática sem justiça territorial” e que a Amazônia não pode ser tratada como “uma zona de compensação das emissões do Norte Global”, como apontam trechos do documento final. Entre as exigências apresentadas estão a demarcação de terras indígenas, o fim da violência contra defensores ambientais e a rejeição a mercados de carbono considerados “falsas soluções”.

O debate ganhou força quando análises recentes apontaram que a COP30 foi moldada por interesses empresariais e por agendas externas que decidem o futuro climático a partir de centros de poder distantes dos territórios que carregam o peso dessas escolhas. Essas críticas alertam que a transição verde global pode transformar regiões inteiras, da Amazônia ao Atacama e do Sahel aos Andes, em zonas de sacrifício e renovar lógicas de exploração sob o rótulo da sustentabilidade.

A denúncia é clara: não existe solução climática verdadeira enquanto corpos e territórios continuarem sendo sacrificados para sustentar o conforto energético de outros. A justiça climática exige que as populações que historicamente cuidam da terra deixem de ser tratadas como obstáculos e passem a ocupar o centro das decisões.