Enquanto o mundo discute o clima, comunidades defendem o Pedral do Lourenção
A luta contra a explosão do Pedral, julgada pelo Tribunal dos Povos, revela os riscos da hidrovia ao rio e às comunidades
Joyce Nunes, da Cobertura Colaborativa NINJA na Cop30
O projeto da Hidrovia Araguaia–Tocantins já existe há cerca de 50 anos, mas sempre esbarrou em dificuldades para conseguir licença. Agora, ele foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula (2023–2026) e dividido em três partes: duas que envolvem a retirada de bancos de areia do rio Tocantins, por meio de dragagem, e outra que prevê a explosão de uma formação rochosa chamada Pedral do Lourenção.
O Pedral do Lourenção é um conjunto de rochas que se estende por mais de 40 km ao longo do rio Tocantins, entre Marabá (PA) e Baião (PA). A ideia do governo é explodir esse trecho para criar um corredor navegável que permita a passagem de grandes embarcações de carga, principalmente de produtos agrícolas e minerais que saem da Amazônia em direção ao Centro-Oeste. A obra pretende aprofundar e alargar o rio para facilitar o transporte dessas mercadorias.
Mas se para o setor produtivo a região onde fica o Lourenção é um obstáculo infraestrutural para a navegação de mercadoria explorada da Amazônia, ele é parte da importante da vida de moradores de 23 comunidades que dependem do rio para circular entre a cidade e seus territórios, além disso, o local é uma área tradicional de pesca para ribeirinhos, quilombolas e indígenas.
Segundo o promotor Rafael Martins, do Ministério Público Federal (MPF), o avanço do projeto pode prejudicar diretamente as atividades produtivas e socioculturais dessas comunidades, que têm grande importância econômica, social e ambiental para a região.

É nesse contexto que o caso da hidrovia Tocantins-Araguaia foi apresentado ao Tribunal dos Povos, espaço idealizado pela organização COP do Povo com programação paralela à oficial da 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30).
De acordo com a apresentação do promotor popular responsável pelo caso, em 2016 a empresa DTA Engenharia LTDA assinou com o Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil e com o Ministério da Integração Nacional a licença para as obras que abririam o canal de navegação na região dos pedrais do rio Tocantins. Cercada de falhas, a ordem de serviço incluía uma série de omissões e fraudes, e de acordo com a promotoria, expunha a população local a episódios de coação.
Entre os problemas identificados em estudo apresentado estavam a redução significativa do número de comunidades afetadas, que somam 25, e o registro de espécies de peixes que não são naturais da região, como denunciam moradores ribeirinhos.
A professora Cristiane Cunha, pesquisadora do Núcleo de Educação Ambiental da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, atuou como testemunha do caso.
Ela afirmou que não houve estudos de impacto ambiental que realmente avaliassem os efeitos da obra, como o monitoramento da pesca, e que os poucos estudos apresentados tinham falhas metodológicas graves. Entre elas, destacou o chamado diagnóstico socioambiental participativo, mas que não tinha participação efetiva das comunidades, já que os moradores precisavam se deslocar para outra cidade para serem entrevistados e ainda eram cobrados por isso.
“Primeiro que eles nunca foram consultar as comunidades. E por quê? Porque não querem ouvir que as comunidades são contra; eles não respeitam as comunidades. Então, por si só, já é um projeto errado, porque nunca houve consulta”, afirma Cristiane. “Nós e o Pedral do Lourenção somos um só. Se impactar o Pedral, vai impactar a gente também, porque ele é o nosso rio Tocantins”, completa.
Desde que teve ciência sobre o caso, o Ministério Público Federal, por meio de uma Ação Civil Pública, adotou diversas medidas para impedir que a licença de implantação fosse concedida. Mesmo assim, ignorando os alertas e irregularidades apontadas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizou a licença em maio de 2025.
Um mês antes da autorização, em abril de 2025, o Instituto Zé Cláudio e Maria promoveu o seminário “Pedral do Lourenção na Terra da COP-30”, dividido em três dias de atividades. O primeiro foi dedicado à articulação interna entre lideranças comunitárias e movimentos parceiros, com atualização sobre o caso lido por representantes do Ministério Público Federal. No segundo dia, ocorreu um encontro aberto na vila ribeirinha Tauiry, que reuniu centenas de moradores da região e de comunidades que serão potencialmente afetadas pelas obras. O terceiro momento aconteceu na comunidade de Praia Alta, também ameaçada pela explosão do Pedral, e contou com uma oficina de comunicação e a exibição de mini documentários aos moradores.

As lutas das comunidades em defesa do Pedral do Lourenção e contra a construção da Hidrovia Araguaia–Tocantins não começaram agora e tampouco devem terminar com o fim da Conferência, momento em que o mundo volta os olhos para Belém para discutir as mudanças climáticas. Para a jovem liderança da comunidade de Praia Alta, Eva Moraes, as mobilizações continuarão enquanto os povos e comunidades forem ouvidos e respeitados.
“Nós precisamos resistir para existir, porque somos constantemente invisibilizados pelas empresas e pelos juízes, que negaram a existência de comunidades tradicionais em nosso território. Precisamos falar sobre justiça climática, mas também sobre justiça territorial, porque nossos territórios estão sendo atacados”, afirma Eva.
Entenda mais sobre o Tribunal Autônomo e Permanente dos Povos contra o Ecogenocídio.

Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio
Realizado entre os dias 13 e 14 de novembro, o espaço foi criado pelo Movimento Organizações de Base pelo Clima, também conhecido como COP do Povo. A iniciativa integra as atividades paralelas da 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30), realizada em Belém durante a segunda e terceira semana de novembro de 2025.
Criado para fortalecer a mobilização e o protagonismo das comunidades tradicionais e de pessoas defensoras ambientais, o Tribunal é um local voltado à luta contra a crise climática. Ele funciona como um espaço de articulação para povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e trabalhadores da terra, auxiliando na articulação da defesa de seus territórios, na denúncia de injustiças e crimes ambientais e ampliação de suas vozes nos processos de decisão.
O Tribunal dos Povos adota uma metodologia inspirada em tribunais tradicionais, dado que os casos são apresentados e decisões são tomadas, mas não possui efeito jurídico. Em vez de juízes e promotores do direito, os casos são conduzidos por juízes e promotores populares, pessoas de referência na luta social e espiritual contra a necropolítica. As denúncias foram apresentadas por representantes de povos e comunidades marginalizadas, que trouxeram testemunhos de violações de direitos humanos sofridas em seus territórios.
No decorrer dos dias, foram apresentados 21 casos, nacionais e internacionais, divididos em três eixos temáticos: falsas soluções climáticas, violência no campo e grandes empreendimentos. Entre esses casos, aparecem, por exemplo, a expulsão de comunidades e povos tradicionais pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte; o caso do povo Wayuu, da comunidade de Wimpeshi, contra a Ecopetrol e o Estado da Colômbia; a dragagem no rio Tapajós; a Hidrovia Araguaia–Tocantins; e as denúncias de trabalho escravo, desmatamento e invasão de terras indígenas relacionadas à pecuária bovina na Amazônia.
Sentença exige reparações sobre casos apresentados
Ao final das apresentações, um documento representando uma sentença simbólica foi lido diante do público. O texto reúne uma série de recomendações sobre como proceder diante dos casos expostos e reconhece que houve, e ainda seguem em curso, diversas violações de direitos humanos e da natureza, afetando os modos de existir das comunidades envolvidas.
A sentença afirma que os relatos apresentados não podem ser entendidos como situações isoladas. Segundo um trecho do documento, “Todos estes casos ouvidos não são casos isolados. São violações sistemáticas que atentam contra a própria mãe terra ao violentar povos e comunidades tradicionais e camponeses, e seus territórios e maretórios.”
O documento ainda responsabiliza o Brasil, Bangladesh, Chile, Colômbia, Bolívia, Guiné Bissau e Israel pelas violações apresentadas, afirmando que esses países favorecem empresas públicas e privadas, nacionais e não nacionais, em detrimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais. O texto também responsabiliza mais de 800 empresas por promoverem violações de direitos ao território e à vida, entre elas a Cargill, a Norte Energia, o Banco da Amazônia e o Banco do Brasil.
Entre as recomendações que constam na sentença simbólica estão o reconhecimento dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e a realização do direito à Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé, entendida como direito coletivo dos povos perante o Estado em todos os seus âmbitos executivo, legislativo e judiciário. O documento reforça que essa consulta deve ser conduzida segundo os Protocolos Autônomos das Comunidades e seus planos de consulta, com reconhecimento do direito ao veto. Também recomenda a anulação de qualquer projeto, obra ou política pública que não tenha passado pela devida consulta.
Outras recomendações incluem a realização de uma efetiva, ampla e popular reforma agrária, a revogação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Decreto Federal 12.600/2025, que fala sobre a inclusão de empreendimentos públicos federais do setor hidroviário, além da investigação criminal com julgamento em prontidão dos casos denunciados perante o Tribunal, o que envolve também a localização de desaparecidos forçados. O documento pede, por fim, o fortalecimento dos mecanismos de proteção dos defensores de direitos humanos, incluindo a implementação do Plano Nacional.
Essa sentença simbólica foi entregue ao procurador do Ministério Público Federal, Rafael Martins, para que desse os devidos encaminhamentos às recomendações do evento.



