Entre conservadores e progressistas, a cannabis medicinal vira pauta comum no centro do debate
Deputado Caio França, prefeito Guto Volpi e Eduardo Suplicy discutem avanço regulatório, acesso e segurança jurídica na ExpoCannabis 2025
Por Sofia Missiato Barbuio
A edição deste ano da ExpoCannabis Brasil levou ao palco do Fórum Internacional um encontro entre atores políticos de diferentes correntes ideológicas, reunidos para debater segurança pública, direitos humanos e o papel da cannabis no SUS.
Participaram o deputado estadual Caio França (PSB-SP), autor da lei que incluiu a cannabis medicinal no SUS paulista; o prefeito de Ribeirão Pires Guto Volpi (PL-SP), responsável pela criação da primeira clínica pública de cannabis medicinal do país; e o histórico economista e parlamentar Eduardo Suplicy (PT-SP), referência global em direitos humanos.
O resultado foi um debate que deixou claro que a pauta da cannabis medicinal atravessou fronteiras partidárias e entrou definitivamente no campo da política pública concreta, onde se discutem acesso, orçamento, desigualdade e segurança jurídica – e não mais estigmas.
SUS Paulista ainda atende só 600 famílias e precisa ampliar patologias, avalia Caio França
Autor da Lei Estadual 17.618/23, Caio França considera que São Paulo inaugurou uma nova fase ao incluir derivados de cannabis no SUS. Mas, um ano após a regulamentação, o deputado faz um balanço ambíguo: há avanços, mas também frustração.
“A lei é uma janela de oportunidades para garantir igualdade de tratamento, afinal hoje existe um ‘apartheid’ sobre o uso dos medicamentos à base de cannabis. São Paulo foi o primeiro estado a incluir esses produtos no SUS, mas ainda temos muitos desafios.”
Atualmente, apenas três patologias são contempladas: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose tuberosa. O deputado argumenta que a regulamentação foi “exageradamente restritiva”, deixando de fora patologias de alta incidência, como dor crônica, epilepsias refratárias, TEA, Parkinson e Alzheimer. “Temos 600 famílias atendidas. Por um lado fico feliz por elas, por outro vejo que muitas ficaram sem tratamento.”
Mesmo com limitações, a lei paulista abriu caminho para outros estados: “Após a aprovação aqui, outros 23 estados replicaram a legislação. São Paulo tem obrigação de orientar o Brasil nessa pauta. Eu sempre digo: ‘não espere precisar para apoiar’.”
Associações sob risco e radicalização política
França também se posicionou sobre os episódios recentes de associações saqueadas ou alvo de operações policiais desproporcionais, como a Santa Gaia, em Lins. “As associações merecem tratamento diferenciado. Temos inúmeros casos em que ações policiais destruíram medicamentos que seriam entregues. Poderia haver outro tipo de abordagem.”
Ele teme que, sem avanços regulatórios, a resistência de setores conservadores se torne radicalização legislativa, travando pautas de saúde pública.
Para o deputado, o Brasil vive uma contradição regulatória: “Não dá pra entender uma legislação que autoriza a comercialização dos produtos, mas não autoriza sua produção. Democratizar o acesso exige um produto nacional.”
França também comentou a polêmica sobre empresas envolvidas em controvérsias patrocinando a feira: “É preciso transparência para evitar conflito de interesses. Estamos cobrando explicações da Prefeitura de SP sobre a denúncia envolvendo preços acima do mercado.”
Ribeirão Pires criou o modelo mais ousado de acesso gratuito – e virou referência nacional
Se o debate estadual anda devagar, na esfera municipal a história é outra. A cidade de Ribeirão Pires inaugurou há seis meses a primeira clínica pública de cannabis medicinal do Brasil, atendendo até 50 novos pacientes por mês com medicamentos fornecidos gratuitamente após prescrição médica. O modelo — uma parceria público-privada com a associação Flor da Vida — virou referência nacional. Segundo o prefeito Guto Volpi (PL), o avanço só foi possível porque o município tirou o tema do campo ideológico.
“Saímos do hipotético e mostramos na prática. Os resultados evidenciam como o cuidado com a cannabis está mudando vidas, gerando bem-estar e qualidade de vida.”
Pode ser replicado no Brasil inteiro?
Volpi afirma que sim – e que o maior pré-requisito não é orçamento, mas coragem administrativa: “Ribeirão Pires é a 6ª economia do Grande ABC. Mesmo assim avançamos. O imprescindível é começar com responsabilidade e diálogo.”
Várias prefeituras já visitam o município para entender o modelo, por meio do Consórcio do Grande ABC.
Segundo Volpi, a resposta está na força do município como laboratório de políticas públicas: “A agilidade burocrática dos municípios pode oferecer ao governo números e resultados que faltam para avançar.”
Ele cita o exemplo da Argentina, que aprovou medidas no nível das províncias antes de avançar nacionalmente.
Há acompanhamento clínico e social tanto da equipe da Prefeitura quanto da associação. Volpi cita alguns casos: de Paula, mãe de um paciente com TEA, relatou evolução significativa e de Ana Lúcia, com fibromialgia há 30 anos, retomou funções básicas antes impossíveis.
Para o prefeito, o maior risco da legalização é a indústria abafar quem abriu caminho:“O maior risco é a produção industrial avançar em detrimento das associações, que historicamente vêm batalhando há décadas.”
Embora não tenha sido entrevistado, Eduardo Suplicy participou da mesa, reforçando que a cannabis medicinal deve ser analisada sob a lente da dignidade humana e da justiça social, numa linha coerente com sua trajetória de 44 anos dedicados a políticas de proteção social.
Sua presença ao lado de Caio França e Guto Volpi simboliza como a pauta rompeu fronteiras partidárias e se tornou tema transversal: da renda básica ao cuidado integral, da política de drogas à inclusão no SUS.
Um debate que o Brasil não consegue mais adiar
A participação conjunta de um deputado progressista, um prefeito de direita e um ícone histórico dos direitos humanos mostra que a cannabis medicinal virou questão de política pública concreta.
A ExpoCannabis 2025 expôs que, enquanto a regulação federal segue travada, municípios e estados já estão desenhando o futuro da política de cannabis no Brasil – na prática, com dados e pacientes reais. E, como disse Caio França: “Não espere precisar para apoiar.”



