Crônica dos estilhaços da COP30: entre muros, credenciais douradas e o Brasil real
A COP30 revela bastidores alvissareiros e fatos louváveis sobre acordos financeiros, mas erra grotescamente quando exclui seus personagens reais
por Raul Mareco
Belém, Pará. Sob um céu que não perdoa, o Parque da Cidade vira palco de um folhetim político tropical onde dois blocos coexistem, mas raramente se tocam.
De um lado, a famigerada Zona Azul: enclave refrigerado, onde engravatados — e uma multidão de lobistas do petróleo — arrotam acordos em tom de caviar.
Do outro, a aguardada Zona Verde, nosso “circuito democrático”, prometida como utopia de participação popular, mas que, para quem protege a floresta, é só fila, espera e desdém institucional.
É muito mais do que uma cerca — o que se viu nestes dias foi uma divisa planetária: o apartheid climático do século XXI. Não é só uma zona VIP.
É a linha de chegada para quem já larga anos-luz à frente no grid que define o clima que cada um de nós vai respirar nos próximos séculos.
Observou-se o espetáculo do absurdo se desenrolar: um balé coreografado no compasso da exclusão.
A retórica oficial empilha o jargão impassível da ONU, mas o que a geografia e a rotina das zonas ensinam é simples e brutal: sem crachá especial, sem moeda na mão, sem sobrenome conhecido?
Sente, cale, aplauda e agradeça a visibilidade. O protagonismo, camarada, está reservado à elite dos emissários fósseis.
Dois mundos, duas temperaturas, dois destinos
A Zona Azul é apresentada ao mundo como quartel-general da esperança verde:
looks business, press kits luxuosos, frases feitas ecoando em salões trancados a sete chaves.
O clima é ameno, o ar resfriado até a alma. Ali decidem-se (ou fingem decidir) as regras do jogo planetário.
Só que o jogo já começa viciado: um exército de especialistas em extração — 1.600, para ser exato — com passe livre, incluindo uma tropa da Petrobras promovida a “membros de honra”, circula entre coquetéis e diplomatas.
São eles que, sub-repticiamente, pautam as cláusulas invisíveis das promessas públicas.
Enquanto isso, a Zona Verde — publicitada como “espaço cidadão” — materializa o oposto.
Vi Munduruku e seus filhos esperando debaixo do sol, convidados a largar seus símbolos de luta (flechas, bordunas) sob o olhar severo da polícia.
“Superlotação”, dizem. Ruas e salas lotadas? Talvez.
“Excesso de floresta”, diriam, se fossem sinceros.
“Invasão” ou a geopolítica da memória curta
Quebrando o script, um grupo de manifestantes — autoridades territoriais indígenas, coletivos urbanos, estudantes — decidiu furar o bloqueio.
Não para depredar: para gritar, ocupar, proclamar o óbvio — esta terra não está à venda!
O aparato de segurança não economizou trincos: bloquearam entradas, acionaram bombas, empilharam viaturas e pretextos.
Ironia? COP: polícia…
A caricatura da “invasão” borrou o quadro.
Quem são os verdadeiros intrusos quando povos que protegem a Amazônia são barrados no próprio quintal, enquanto CEOs de mineradoras ganham direito de voz e voto?
Como disse uma liderança:
“Querem discursar sobre nossas dores, mas não ouvem nossos avisos — nem deixam a gente chegar perto.”
E cada ato desse lado B da COP30 teve resposta: portões trancados, filas quilométricas, contingente de emergência postado para atender consequências, não causas.
O mais trágico — ou emblemático —: o Ministério Público Federal chamado para “garantir integridade” a quem ousa pedir justiça, expulso do debate decisivo sobre como (ou se) sobreviverão seus territórios.
Credencial é o novo tratado
O acesso ao púlpito da Zona Azul tornou-se objeto de cobiça burocrática.
Só atravessa a ponte quem prova “base social ampla”, reputação nacional, currículo alinhado à abstração climática.
De fora, ficam expressões vivas: quilombolas com terras preservadas, jovens cientistas sem pedigree político.
Há exceções, claro: se sua empresa fura poço ou minera a Amazônia, a cortesia do overflow diplomático te garante entrada irrestrita.
A linguagem oficial anuncia “dar visibilidade”. Só visibilidade — e olhe lá.
Não se fala em protagonismo, muito menos em poder real de decisão para quem sente a crise na carne.
O ecoturismo das elites avança entre selfies e discursos, enquanto moradores originários seguem protagonistas invisíveis.
Topografia do poder, cartografia da exclusão
O layout é a política. A Zona Azul é arquibancada onde se joga o Mundial do Destino Climático — mas só entra craque do dinheiro ou do lobby.
A Zona Verde? Plateia protocolar. Sua função é aplaudir.
Essa arquitetura serve a uma hierarquia global inegável: Norte decide e finge consultar, Sul paga a conta do desastre.
Delegações do Sul que não conseguem bancada dormem empilhadas em albergues, dependem do favor alheio; enquanto isso, os grandes emissores estacionam barcos e jatinhos a minutos do core do evento.
A consequência é matemática política: quem tem mais crachás ocupa mais mesas, pressiona mais portas, faz negociações paralelas enquanto os descredenciados batem na trave.
Sociedade civil, pela comissão organizadora, “dialoga, apresenta projetos, fortalece redes” — menos decidir.
Os movimentos sociais sabem disso.
Por isso articulam sua COP paralela, a Cúpula dos Povos — sua própria ágora, onde podem fazer barulho, tensionar, pressionar.
Para eles, a batalha não é por “influenciar”, mas por desconstruir a farsa do consenso.
Consequências: da exclusão à potência coletiva
Enquanto o ar-condicionado pipoca na Zona Verde e a sensação térmica de 40 graus do lado de fora evapora qualquer pudor, chega a ser tragicômico debater aquecimento planetário enquanto as máquinas não suportam o clima local.
Quando termina o evento, o cenário permanece: exclusões estruturais não ficam no portão — contaminam decisões, enfraquecem acordos, distanciam ciência do chão batido.
Mas também geram potência: a cidade aprende, os movimentos ganham casca, a criatividade brota no improviso.
A ausência força presença — e quando os donos do futuro batem de frente com a porta fechada, criam atalhos, gritam mais alto, viralizam no TikTok, ocupam o noticiário, inventam a pauta real.
A genealogia da exclusão na COP é, paradoxalmente, o maior berço de mudanças autênticas.
O que fica são as novas conexões forjadas: ativistas que nunca se falariam agora sonham juntos;
povos da floresta, que pisaram pela primeira vez em um evento internacional, passam a defender sua ilha como ninguém;
jornalistas aprendem que só existe cobertura legítima onde há corpo presente, ouvido apurado e, sim, até senso de humor.
No fim das contas, esta topografia não é geográfica — é simbólica, existencial.
A linha divisória entre elites e povos, entre discurso e vida real, entre fachada e resistência.
As “zonas” são a senha para entender as COPs que habitamos: espetáculos diplomáticos onde os senhores do desastre fingem negociar salvação, enquanto quem sempre protegeu fica do lado de fora.
Se há horizonte, ele se pronuncia no recado dos Munduruku, na recusa a entregar armas à porta, no constrangimento incisivo dos Povos à COP: inclusão não se pede — toma-se.
E o grito, mais vivo do que nunca, ecoa:
Nada sobre nós, sem nós.
É no terreno escorregadio da exclusão e na irreverência dos que não se deixam abater que mora, talvez, o próximo grande capítulo da luta por justiça climática.