Evelyn Ludovina, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30

A transição climática, entendida como a mudança de uma economia baseada em combustíveis fósseis para outra pautada em baixo carbono, é mais do que um desafio tecnológico: é um processo que exige justiça social. Sem considerar quem é desproporcionalmente afetado pelas mudanças do clima e pelos novos projetos energéticos, a transição corre o risco de reproduzir desigualdades históricas e ampliar vulnerabilidades, especialmente entre povos tradicionais, comunidades rurais e populações que já vivem às margens dos processos decisórios.

É nesse contexto, na COP30, que o Tribunal Popular por Transição Justa, realizado durante a Cúpula dos Povos na UFPA, ganha relevância. O espaço reuniu lideranças femininas, para denunciar não apenas violações pontuais, mas um padrão de impactos socioambientais associados tanto a empreendimentos de energia renovável quanto a projetos minerais e industriais. As falas evidenciaram que, embora a transição energética prometa ser uma alternativa sustentável, sua implementação tem aprofundado conflitos em territórios indígenas, quilombolas, caiçaras e em áreas rurais e costeiras

Do Norte ao Nordeste, diferentes comunidades vêm enfrentando consequências diretas do avanço de projetos instalados em nome do desenvolvimento sustentável. Três casos aparecem de forma emblemática: a contaminação por metais no Recôncavo Baiano, os efeitos das turbinas eólicas sobre comunidades no Ceará e o assassinato de duas quebradeiras de coco babaçu no Pará, episódio que expõe o agravamento de conflitos fundiários associados também à pressão por novas fronteiras energéticas.

(Foto: Evelyn Neves)

Sobre o Recôncavo Baiano, a denúncia foi apresentada por Claudia dos Santos, representante da Comunidade Quilombola Cambuta de Santo Amaro, da Associação Quilombola Negra da Bahia. Ela relatou que a empresa de mineração Plumbum permaneceu por mais de três décadas na região, deixando um rastro de contaminação por chumbo que persiste até hoje. Rios poluídos, animais mortos e doenças crônicas compõem o cotidiano das comunidades afetadas.

“Os pescadores e marisqueiros são os mais impactados”, afirma Claudia, ao destacar que a diminuição da fauna aquática provoca queda de renda e desestrutura modos tradicionais de subsistência.

No Ceará, o coletivo EcoMaretório, representado por Alanna Loiola, caiçara de Icaraí de Amontada (CE), bióloga e mestranda na UFC, apresentou um diagnóstico que questiona a imagem da energia eólica como solução verde e sem riscos. 

“A gente fez um estudo de diagnóstico de saúde humana […] no qual a maioria da população vê as turbinas eólicas de suas residências, 88% veem as torres de casa, 64% escutam o barulho das turbinas o tempo todo, 50% dizem que o barulho atrapalha o sono, 75% sentem tristeza com a mudança da paisagem, 96% viam o território preservado e hoje 93% dizem que mudou muito, 88% dizem que antes das torres estavam bem de saúde e 91% relatavam bem-estar; hoje, 71% da população sente piora na saúde e 36% já procuraram um médico por receberem diagnósticos associados à ansiedade e depressão”, afirma Alanna. 

O relato evidencia que a transição energética, quando conduzida sem diálogo ou proteção territorial, gera impactos silenciosos e profundos.

Foto: Evelyn Neves

O terceiro caso trouxe à tona o assassinato de Antônia Ferreira dos Santos e Marly Viana Barroso, duas quebradeiras de coco babaçu mortas no município de Novo Repartimento (PA) dias antes da Cúpula. A denúncia foi feita por Maria de Sousa, coordenadora da regional Pará do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que pediu justiça e alertou para o avanço de conflitos envolvendo destruição de babaçuais e atuação de fazendeiros. Ela reforçou que a Lei do Babaçu Livre, principal reivindicação do movimento, só existe de forma municipal no Pará, em São Domingos do Araguaia, deixando milhares de mulheres expostas à violência e à perda de seus territórios.

Transição justa: impasse da agenda climática

Ao ouvir diferentes vozes e experiências, o Tribunal Popular por Transição Justa expôs uma contradição central da agenda climática: enquanto políticas globais defendem a urgência de substituir combustíveis fósseis, muitas das alternativas propostas seguem reproduzindo desigualdades históricas. 

“O que está todo mundo enfrentando aqui é uma discussão sobre o modelo de desenvolvimento. Não são questões isoladas e, nesse sentido, talvez sejam tão difíceis exatamente por isso. Porque temos uma perspectiva hegemônica. […] O que os povos e comunidades tradicionais, principalmente esses presentes no tribunal, estão dizendo para nós é que existe uma outra forma”, afirmou Tricia Calmom, superintendente de Apoio e Defesa aos Direitos Humanos no governo do estado da Bahia.

Foto: Evelyn Neves

A transição climática, portanto, não pode ser medida apenas por megawatts instalados ou por toneladas de carbono compensadas. Ela depende do reconhecimento de que a justiça climática passa necessariamente pela justiça territorial e que nenhum processo será verdadeiramente sustentável se continuar sacrificando as mesmas populações que historicamente sustentam os modos de vida mais alinhados à preservação dos ecossistemas.