Joyce Nunes, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30

“Em memória dos que não tiveram justiça, dos que não tiveram seus nomes nas listas porque desapareceram, dos que foram assassinados, torturados e desumanizados. O Tribunal dos Povos é por todos eles.” 

Com essa declaração da coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria, Claudelice Santos, e sob as bênçãos e proteções de um ritual conduzido por diversos povos, teve início o Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio. 

O evento é realizado pelo Movimento Organizações de Base pelo Clima, conhecido como COP do Povo. Ele ocorre paralelamente à 30ª edição da Conferência das Nações Unidas pelo Clima (COP-30), realizada pela Organização das Nações Unidas em Belém do Pará em 2025. O objetivo da iniciativa é ser um local de denúncia para os povos, territórios e comunidades afetados por diversos casos de retirada de direitos, violação dos territórios e, muitas vezes, também da vida. Não tem poder judicial ou de política, mas grande eficácia para visibilizar mundialmente violações de direitos. 

O primeiro caso apresentado foi o da expulsão das comunidades e povos tradicionais durante a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, obra que atingiu cerca de 40 mil pessoas e completou 14 anos em 2025. A instalação teve início em 2011 na cidade de Altamira, no Médio Rio Xingu, com as obras finalizadas em 2021.

A denúncia apresentada pelo procurador simbólico Eryck Batalha, do Instituto Fogo Cruzado, aponta responsabilidades da empresa Norte Energia, do Consórcio Construtor Belo Monte, do financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do governo federal, representado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

De acordo com o promotor, a empresa falhou em atender as demandas legais acordadas, mesmo com o compromisso firmado no Plano Básico Ambiental (PBA) do projeto. O documento divulgado pela organização do evento, que detalha o caso, aponta que o questionário de cadastramento elaborado pela empresa não possuía linguagem acessível ao público-alvo e que o valor das indenizações não cobria os custos de uma nova moradia adequada aos modos de vida ribeirinhos. Além disso, o IBAMA é acusado de omissão na fiscalização do cumprimento dos acordos ambientais e sociais, ignorando a aplicação das condicionantes ao emitir as licenças para a operação.

Mônica Brito é uma das moradoras impactadas pela construção da Usina e expulsas de seu território em 2011. Ela relata que sua saída também envolveu um processo de isolamento social, pois foi afastada de seus vizinhos e familiares e, durante esse período, recebeu mandados judiciais que a impediam de circular pela cidade de Altamira com pessoas envolvidas nas mobilizações contra a construção da hidrelétrica. Além disso, Mônica aponta o aumento da violência na região com a chegada de novos moradores, ressaltando que a maioria das vítimas desse cenário eram jovens negros e pobres, que passaram a viver sob constante ameaça. Hoje, ela vive de aluguel e afirma não ter recebido indenização suficiente para comprar uma casa.

“A gente está acreditando muito nesse tribunal, porque o resultado deste tribunal aqui, dessas falas aqui, é um produto de dignidade. É isso que nós queremos: dignidade, respeito, justiça, justiça climática, justiça pelos nossos corpos”.

Quando as mobilizações gritaram: “Pare Belo Monte!”

Durante o período de aprovação do projeto da usina, as comunidades tradicionais se manifestaram contra a construção, denunciando os impactos que a barragem teria nos territórios, nos seus costumes e nos seus modos de vida. Os principais receios da população eram sobre as consequências da instalação de uma megabarragem no Rio Xingu, morada de diversas espécies, como os peixes piracemas e os tracajás, mas também sobre a vida do próprio rio e dos ribeirinhos e povos indígenas que ocupavam as regiões próximas a ele. A população alertava para a expulsão de milhares de pessoas para que a construção acontecesse ou, no caso das 23 etnias afetadas, para a chegada desordenada de novos moradores e o avanço da exploração ilegal de madeira, que já degradava terras indígenas da região..

As mobilizações contra a construção foram além da região de Altamira, ganhando repercussão nacional a partir de atos espalhados por todo o Brasil com centenas de pessoas, em um movimento conhecido como “Pare Belo Monte”. As manifestações reuniram comunidades tradicionais, diversos setores dos movimentos sociais, ambientalistas, pesquisadores, pastorais sociais e a população em geral. A vereadora de Belém, Vivi Reis, que iniciou sua militância em meio aos atos contra a construção da Usina, também deu seu testemunho:

“A nossa luta contra a Usina era organizada em Belém pelo Comitê Metropolitano Xingu Vivo para Sempre. Construímos atos, mobilizações de rua, fazíamos chamados nacionais e chegamos a ocupar o canteiro de obras de Belo Monte, mostrando a força de mobilizações que estavam denunciando essa política de lucro sobre a vida e que não serve, de fato, às vidas da Amazônia.”

Apesar de não conseguirem impedir a implantação da Usina, a partir de extensas mobilizações foram firmadas 23 condicionantes para reduzir os impactos causados pela represa. De acordo com uma prévia com disposições do projeto disponibilizada pelo IBAMA, a regularização fundiária de todas as terras impactadas, um plano de fiscalização e vigilância dos territórios indígenas afetados, a garantia de acesso ao reservatório e a indenização para as comunidades retiradas do local estavam entre as condicionantes. No entanto, mais de uma década após a instalação da Usina, o caso chega ao Tribunal dos Povos como um crime que concretizou a tragédia anunciada pelas comunidades tradicionais e pelas milhares de pessoas que foram às ruas.

Sentença

Com 21 casos analisados, o Tribunal dos Povos foi estruturado em três eixos temáticos: Falsas Soluções Climáticas, Violência no Campo e Grandes Empreendimentos.

No encerramento das atividades, foi entregue um documento simbolicamente apresentado como uma “sentença”. Esse documento reúne as denúncias apresentadas e traz recomendações de medidas a serem adotadas. A entrega foi feita ao procurador Rafael Martins, do Ministério Público Federal, que será o  responsável por dar os devidos encaminhamentos.

Outro ato realizado durante o encerramento foi a transformação do Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio em Tribunal Autônomo e Permanente dos Povos contra o Genocídio, com novas edições já previstas para 2026, com novos casos a serem apresentados.