Por Mauriceia Rocha

Uma dupla de homens, uma estranha e aparente normalidade, um tom desolador de deslocamento, fantasmas da ausência, pessimismo, o tempo lento da ampulheta, memórias, a ausência de propósito, um humor sombrio, exílio… Estamos falando dos filmes “Os Banshees de Inisherin” (2022), de Martin McDonagh, e “Anemone” (2025), de Ronan Day Lewis, mas, tranquilamente, poderíamos estar descrevendo Esperando Godot, peça de teatro escrita por Samuel Beckett em 1949.

Nada de grandioso realmente acontece. O silêncio grita e revela tentando esconder, há pausas, ações contidas e a tensão é pacata. A natureza, para além de cenário, envolve simbolicamente os personagens; seja em uma ilha fictícia que isola Pádraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson) do resto do mundo, ou na névoa da floresta onde Ray Stoker (Daniel Day Lewis) se autoexila, envolto a anêmonas, conhecidas como flores do vento, as favoritas de seu pai, até a única árvore representando a passagem cíclica do tempo, onde Vladimir e Estragon aguardam, aguardam e aguardam.

As três histórias trazem a guerra como ferida aberta, quase como uma presença assombrosa — ou melhor, uma banshee: criatura da mitologia irlandesa que geme para anunciar que a morte se aproxima. Esperando Godot é a peça central que representa o Teatro do Absurdo, movimento que espelha o desespero e a falta de sentido no ser humano pós-Segunda Guerra Mundial. Dizem que Vladimir e Estragon seguem esperando até hoje por uma intervenção, uma salvação, um deus (seja com letra maiúscula ou minúscula). Já em “Anemone”, Ray é torturado por sua própria consciência, diante de seu passado como ex-soldado britânico envolvido em conflito na Irlanda do Norte, e em “Os Banshees de Inisherin”, “uma guerra entre dois amigos enquanto uma guerra maior acontece lá fora”, segundo palavras do próprio roteirista e diretor em entrevista à Exame Pop, referindo-se ao contexto em que o filme se desenrola: 1923, durante a Guerra Civil Irlandesa, quando a população se dividia em lados opostos entre a República da Irlanda e o Reino Unido.

“Os Banshees de Inisherin”. Foto: Divulgação

Irlanda essa que também é um ponto de intersecção entre os artistas criadores. Martin é britânico, filho de irlandeses, enquanto Ronan, estadunidense, passou parte de sua infância em terras irlandesas, e Beckett é um dos filhos ilustres do país. Os artistas também se encontram no teatro, já que McDonagh é também dramaturgo. Além da notável influência da linguagem teatral para descrever cenas rotineiras, vale ressaltar que “Os Banshees de Inisherin” já foi uma peça, que com os anos se desfez e se tornou um roteiro, mantendo do original apenas o título. Já Ronan também transparece suas outras vertentes artísticas em seu longa-metragem de estreia. Seu lado pintor e escultor aparece através “da criatura”, como ele assim a chama — figura recorrente em suas obras, com pescoço alongado, rosto humano e um minúsculo pênis.

Ademais, todo o diálogo que as obras cinematográficas travam com a obra de Beckett, ambos os filmes acrescentam mais uma camada de imobilidade às suas tramas: a da masculinidade como prisão, travando caminhos e comunicações. Colm prefere cortar os próprios dedos da mão para afastar o melhor amigo; Ray prefere abandonar a família e lidar com suas dores sozinho, deixando um legado geracional de dor e violência para seu próprio filho. Em contrapartida, na vida real, o protagonista Daniel Day Lewis volta de seu exílio como ator, protagonizando e co-roteirizando a película, deixando um legado geracional artístico e de prestígio.

“Os Banshees de Inisherin” está disponível no streaming Disney+, “Anemone” ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e Esperando Godot volta e meia está em cartaz através de algum grupo ou companhia teatral, por se tratar de um clássico que envelhece cada vez melhor.