A Lupa sobre a Cultura no Amazonas: Entre a Celebração e a Ganância que Asfixia
No Amazonas, o Dia da Cultura expõe a força criativa e a negligência política que sufocam o setor.
por Michelle Andrews
O Dia Nacional da Cultura, instituído pela Lei nº 5.579, de 15 de maio de 1970, é comemorado anualmente em 5 de novembro, em homenagem ao nascimento de Rui Barbosa. A data foi estabelecida para valorizar os trabalhadores da cultura, a pesquisa, a criatividade e os costumes de uma nação. No Amazonas, no entanto, esta data é um espelho que reflete as profundas oscilações e fragilidades do setor. Enquanto se celebra a inegável força criativa, atestada pelos mais de 7 mil trabalhadores cadastrados no Cadastro da Cultura Estadual, a sociedade é forçada a colocar uma lupa sobre a invisibilidade política que sufoca essa potência.
A sociedade busca, com razão, referências como Belém do Pará para entender a valorização cultural, mas a verdade é que as instâncias governamentais locais parecem existir primariamente para gerir eventos, e não para construir políticas públicas continuadas. A impressão é que as secretarias de cultura funcionam, em grande parte, para administrar emendas parlamentares e apagar incêndios pontuais, desrespeitando o propósito de fomento e sustentabilidade.
A análise do setor cultural amazonense revela um padrão desolador, especialmente após as gestões recentes. Houve tentativas de reestruturação durante a gestão de Wilson Lima, o retorno do Conselho de Cultura e a chegada das políticas emergenciais, como a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB). Mas o que se percebe é a absoluta descontinuidade dos programas culturais. A cada mudança de governo, a aplicação de recursos e a visão estratégica se fragmentam.
Hoje, paga-se o preço de um governo que trata a cultura como algo supérfluo, insignificante e, pior, como cabide de emprego. Essa realidade coloca a região em um estado de não apenas isolamento territorial, mas de isolamento político: Secretários de Cultura se trocam com conselheiros em um jogo de cartas marcadas. Não há leis de incentivo robustas, nem em âmbito municipal, nem estadual, e os sistemas de cultura estão defasados ou sequer são aplicados.
A triste realidade é que essa ganância surreal desrespeita o Dia Nacional da Cultura e, sobretudo, a Constituição Federal, que, em seu Artigo 215, garante o pleno exercício dos direitos culturais e o apoio e incentivo do poder público à valorização e difusão das manifestações culturais.
É fundamental ressaltar a importância econômica do setor. A Economia da Cultura e das Indústrias Criativas (ECIC) no Brasil, que inclui o audiovisual, por exemplo, superou o setor automotivo em participação no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, representando 3,11% do PIB em 2020, à frente da indústria automotiva (2,50% no mesmo período). Os dados são do Observatório Itaú Cultural, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, o setor da cultura emprega um contingente de trabalhadores maior que o da indústria automobilística. Especificamente no setor do audiovisual, estudos recentes apontam que ele emprega mais de 50% da força de trabalho da indústria automotiva. Esses números atestam que a cultura é um motor econômico e gerador de empregos qualificados, e não apenas um gasto.
Um dos maiores problemas estruturais no Amazonas é a centralização cultural. A celebração e o debate parecem sempre se restringir ao eixo do Teatro Amazonas e do Largo de São Sebastião, ecoando eventos pontuais como o fervor da torcida por Isabelle Nogueira. A cultura, aqui, é acessível para quem consegue chegar no centro da cidade ou quem já estudou no Liceu de Artes Cláudio Santoro. Este, ironicamente, é um liceu de artes que, apesar de sua importância, carece de regulamentação profissional, sustentando-se em um decreto frágil que pode ser revogado a qualquer troca de gestão.
Outro ponto crucial é a falta de indicadores. Existem os cadastros da cultura, mas são registros que apenas recolhem dados e não fornecem indicadores abertos. Não se sabe quais são os perfis dos trabalhadores da cultura do Amazonas. Não há indicadores claros que permitam a formulação de políticas baseadas em dados concretos. Sem saber quem se é e onde se está, o setor fica à mercê da invisibilidade autoimposta.
São 62 municípios, e muitos de seus gestores culturais, indicados, tentam agir, mas falham por falta de apoio político de seus prefeitos. Artistas, muitos ainda não politizados, sucumbem ao cansaço, desviando o foco da luta.
Neste Dia Nacional da Cultura, a maior celebração deve ser a da resistência. É preciso reconhecer que o cansaço é real e legítimo. Deve-se pausar, descansar, mas com o compromisso de retomar a luta e se atentar a quem são os verdadeiros produtores de invisibilidade cultural no Amazonas. As coisas parecem mais próximas de melhorar do que piorar, justamente pela mobilização e pela luta.
A retomada da política cultural em nível federal, com o retorno do Ministério da Cultura (MinC) e a garantia de continuidade de programas estruturantes, deve ser um farol de esperança. Mesmo diante das tentativas do Congresso de desmantelar a área, o governo demonstrou o devido valor à cultura, assegurando a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), a retomada da Política Nacional de Cultura Viva e valorizando a participação social com a realização da Conferência Nacional de Cultura. O coletivo, artistas e simpatizantes que, mesmo em momentos difíceis, como durante o governo de Michel Temer, bradou pelo Fica MINC e resistiu ao negacionismo que enxergava a cultura apenas como “mamata” ou despesa para os cofres públicos. E ainda bem que tinha gente que não fugiu à luta!
A pergunta que fica para 2025 é: O que se espera do Dia Nacional da Cultura de 2026? É preciso que cada trabalhador da cultura entenda como sua ação individual afeta a coletividade. Não se pode continuar calado diante dos absurdos. São necessárias políticas culturais estruturantes e continuadas, regulamentação e aplicação efetiva dos Sistemas de Cultura, indicadores públicos e transparentes e a descentralização real dos recursos para os 62 municípios.
A cultura do Amazonas é uma potência. Que a celebração deste dia seja o ponto de partida para a luta por uma gestão que, de fato, a enxergue como a prioridade constitucional que ela é.