Soberania em jogo: o Brasil não pode estar sempre abaixando a cabeça
O audiovisual brasileiro é forte, mas vive sob regras desiguais que favorecem gigantes estrangeiros e enfraquecem a soberania econômica do país
Por Priscila Miranda do Rosário
O audiovisual é um setor global. Não existe mais fronteira entre cinema, televisão, internet e streaming. As histórias circulam, as plataformas competem em escala planetária e as receitas se concentram em poucas mãos. O que diferencia os países hoje não é o talento — é a inteligência regulatória.
É simples: todo mercado precisa de equilíbrio. No Brasil, uma parte do setor audiovisual — produtoras, distribuidoras, salas de cinema e canais — paga suas contribuições ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é o mecanismo econômico que mantém o setor funcionando. Enquanto isso, as grandes plataformas estrangeiras — Netflix, Amazon, Disney+, Apple e outras — operam no mesmo território, lucram no mesmo público e não pagam nada. Isso é uma distorção. E é isso que precisa ser corrigido. Não tem nada de romântico, nada de “identidade nacional” — tem a ver com economia, concorrência justa e soberania fiscal. A pauta do streaming não é cultural. É comercial. E o que está em jogo é se o Brasil vai continuar se comportando como mercado de consumo passivo ou se vai finalmente atuar como player global, com regras claras e reciprocidade.
O cinema brasileiro hoje é competitivo. Ainda Estou Aqui ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional, O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, estreou em Cannes e tem distribuição mundial, e Baby, de Marcelo Caetano, foi vendido para 23 países. Esses números não são bandeira nem orgulho simbólico: são indicadores de mercado. Mostram que o audiovisual brasileiro tem produto, qualidade, público e preço. O problema é que o ecossistema em torno desses filmes não é tratado como mercado global. Produtores e distribuidores brasileiros pagam taxas, enquanto as plataformas que faturam bilhões aqui operam sem contrapartida. É uma assimetria que mina o equilíbrio e a sustentabilidade do setor.
Quando o ministro Alexandre de Moraes suspendeu o funcionamento do X por descumprimento das leis brasileiras, o que aconteceu ali foi mais do que uma decisão judicial. Foi um ato de coragem institucional. Foi a primeira vez no mundo em que um país colocou uma gigante digital diante das suas próprias leis e disse: “Aqui, quem manda é a Constituição brasileira.” Esse gesto marcou uma mudança de era. Num mundo dominado por monopólios tecnológicos e assimetrias econômicas, nenhum outro país havia feito isso. E é por isso que esse momento é histórico: o Brasil não foi servil, foi soberano.
Ninguém é contra as plataformas. O X, o Spotify, o YouTube, a Netflix — todas são ferramentas fundamentais, que democratizaram o acesso e transformaram a economia criativa. O que se quer é igualdade regulatória: o direito de competir em condições justas. Regular não é punir. É garantir que quem lucra aqui contribua aqui. E isso não é apenas uma questão de justiça: é uma questão de inteligência econômica. Quando há regulação clara, o mercado se fortalece. Novos players surgem, o ecossistema se amplia e a inovação floresce. O objetivo é esse — criar um ambiente próspero, competitivo e sustentável. Monopólio não é sinal de capitalismo. Monopólio é pré-mercantilismo. É o oposto do livre mercado. Monopólio é a lógica da monarquia econômica, da concentração e da dependência. O verdadeiro capitalismo — aquele que gera riqueza e diversidade — depende de pluralidade e regras equilibradas. E é isso que a regulação busca: devolver o sentido de competição saudável, onde todos possam existir, e não apenas os gigantes.
Como dizia Wanderley Guilherme dos Santos — o primeiro grande cientista político brasileiro, doutor em Berkeley e um homem à frente de seu tempo —, a tecnologia pode nos libertar ou pode nos escravizar. Ele via, com décadas de antecedência, o que Marx já havia diagnosticado: a tecnologia pode servir à emancipação humana ou à sua submissão. As plataformas digitais são exemplo disso. Elas democratizaram o acesso, abriram o mercado e derrubaram barreiras que antes impediam milhões de pessoas de consumir e produzir conteúdo. Mas a fronteira entre democratização e monopólio é tênue. E é nessa linha que o Brasil precisa se posicionar — com coragem e racionalidade. Enquanto o país não investir em tecnologia e inovação com a mesma força que Estados Unidos, China ou Europa, precisa se proteger por meio da regulação inteligente. Não para se isolar, mas para garantir que a colaboração internacional aconteça de forma justa. A soberania, hoje, é tecnológica. Quem não regula, é regulado.
O audiovisual não é um setor “cultural”: é um setor econômico estratégico. Movimenta cadeias de trabalho, gera receita, inovação, exportação e prestígio internacional. O problema é que, enquanto alguns players cumprem suas obrigações fiscais e legais, outros atuam em vantagem, drenando o mercado local. O Fundo Setorial do Audiovisual não é um símbolo: é um instrumento econômico de reinvestimento. O dinheiro que o setor gera, volta para o próprio setor. Quando apenas uma parte paga, o resultado é simples: concorrência desleal e desequilíbrio estrutural. O Brasil precisa sair da posição de consumidor e assumir a de potência audiovisual global. E isso começa por entender que regulação não é controle: é estratégia de mercado.
É fundamental que o presidente Lula entenda que essa pauta não é do cinema. É do Brasil. É uma pauta de Estado, de soberania e de equilíbrio econômico. A regulamentação do streaming define quem manda nas narrativas, nos lucros e nas regras do jogo. Define se o país vai continuar exportando talento e importando dependência ou se vai se posicionar como parceiro — e não colônia.
Existe espaço para todos. Para o mundo inteiro. A economia global não é um jogo de soma zero. A China entendeu isso. Com uma população de mais de dois bilhões de pessoas, o país conseguiu dar um turning point histórico, transformando sua escala populacional em potência econômica e tecnológica. E o Brasil, guardadas as proporções, é também um mercado relevante. Tem dimensão continental, público consumidor ativo e enorme capacidade criativa. O problema é que, muitas vezes, falta autoestima institucional. É sobre isso também. Soberania é econômica, mas é também psicológica. É o ato de dizer: “Escutem, nós existimos, nós produzimos, nós regulamos.” E de agir à altura disso.
Depois do que aconteceu com o X, o Brasil entrou em uma nova era. Uma era em que o país provou que tem coragem institucional e capacidade de se impor diante de monopólios globais. Isso é histórico. E o que acontece agora precisa estar à altura desse gesto. O audiovisual — assim como as plataformas — é parte da economia mundial. E nenhum país que queira ter relevância pode se dar ao luxo de abrir mão de soberania fiscal e tecnológica. O que está em jogo não é um setor, nem uma lei: é a posição do Brasil no tabuleiro global. E o país que já mostrou que sabe dizer “não” precisa, mais uma vez, erguer a cabeça e agir com inteligência e firmeza.

Priscila Miranda do Rosário é distribuidora de cinema e fundadora da Fênix Filmes.



