George Clooney em ‘Jay Kelly’: a hora em que o mito tenta ser homem
Uma reflexão sobre a masculinidade, o mito de si mesmo e o impacto da carreira de um astro
Por Lilianna Bernartt
Noah Baumbach estrutura “Jay Kelly” como um autorretrato ficcional de um astro (George Clooney) às voltas com a própria carreira. Jay busca entender sua trajetória artística e íntima.
Ele aceita uma homenagem à sua carreira em um festival na Toscana e embarca em uma viagem na qual aproveita o percurso para tentar reatar um laço quase perdido com suas duas filhas.
É um filme de viagem física e mental: Jay revisita seus começos, cruza com um ex-amigo que o acusa de ter roubado sua carreira, tem conversas profundas com seu agente (Adam Sandler) e tenta entender se existe um “eu” por trás de tantas máscaras públicas.
Ao longo do percurso da viagem, o filme costura reencontros, atritos e memórias, misturando estrada, tributo profissional, paternidade falha e passado não resolvido.
O objetivo declarado do filme é provocar uma reflexão sobre a masculinidade envelhecida e a crise identitária de um artista que aprendeu a ser amado, mas nunca a existir. Jay é um homem que treinou muito para caber nos olhos de todos e agora descobre que pode não caber em si mesmo.
O filme tenta investigar essa existência múltipla: o ator profissional, o pai ausente, o amigo negligente, o mito de si próprio. Onde acaba o personagem e começa o homem?
Baumbach conversa clara e diretamente com outras obras: 8½, de Fellini, no artista à deriva num mundo de homenagens; e “Memórias”, de um Woody Allen pré-cancelamento.
Mas, diferente desses filmes, que mergulham na dor e no ridículo, em “Jay Kelly” Baumbach evita a crueldade e suaviza o conflito. É como se colocasse açúcar em cada possibilidade de angústia — e é justamente aí que o filme se amorna e perde potência.
Clooney está ótimo e encarna, com leveza e melancolia, esse rosto que carrega uma história de glamour e culpa, bem como um espelho de sua própria trajetória.
Adam Sandler chega na temperatura certa, aterrado, como o agente de Jay Kelly, que faz o contraponto de toda a busca do astro. Seu personagem significa o real, o último vínculo afetivo possível: um homem que conhece o astro por dentro, sem glamour, sem lenda, que sabe a exata medida do vazio que o sustenta.
“Jay Kelly” é um filme sobre perguntas profundas, que doem, mas que ficam só na superfície, já que o roteiro parece temer sua própria pesquisa.
Ele funciona mais como um espelho levemente embaçado do que como um mergulho profundo. Falta risco. Falta cutucar a ferida sem máscaras, caras e bocas.
Até mesmo porque sabemos do que Baumbach é capaz no que diz respeito às suas análises cirúrgicas e dilacerantes. E também porque ele mesmo dá um gostinho do que poderia ter sido o filme quando Clooney contempla — literalmente — suas próprias imagens.
É o instante em que Jay e Clooney se cruzam, em que realidade e arte se cruzam, e a mensagem transborda as telas porque (re)afirma que toda a obra de um artista também se transforma em memória coletiva. Esse espelhamento — o personagem olhando para a própria filmografia, e nós olhando para aqueles mesmos filmes como parte da nossa história — lembra que o cinema não é só biografia íntima do artista, mas também biografia fragmentada de quem o assiste.
Cada papel que Clooney interpretou é também um fragmento da vida de alguém, uma linha de fuga, um afeto, um impacto que nos formou.
E, no fim, é isso que o filme, mesmo timidamente, reafirma: a vida de um artista nunca é só dele — ela atravessa, muda e compõe a vida de milhares.
Baumbach mira no aprofundamento e se perde pelo caminho, mas essa própria hesitação acaba ecoando como metalinguagem da pesquisa que o filme tenta fazer: a busca de um artista por significado.
“Jay Kelly” não encontra uma resposta — mas devolve a pergunta. E cinema, muitas vezes, é isso: insistir em encontrar sentido onde não há garantias, sabendo que, no processo, o que tocamos nos outros pode ser maior do que o que compreendemos sobre nós mesmos.



