Por Hyader Epaminondas

Em “Assalto à Brasileira”, ficção e realidade se fundem para retratar o Brasil de 1987. Baseado no assalto real ao Banestado em Londrina, ocorrido em dezembro daquele ano, o filme, sob a direção de José Eduardo Belmonte, transforma um episódio criminal em metáfora da tensão social e econômica que ainda assola o país.

É um filme sobre a sociedade civil esmagada pelo desespero econômico, um povo que caminha sobre o fio da fome e da miséria, enquanto os governantes se empanturram de balas de goma, lambendo os dedos adocicados e gargalhando como se o sofrimento alheio fosse um espetáculo de circo. Cada sorriso açucarado deles é um tapa no rosto dos que vivem torturados pela escassez, cada mordida doce ressoa como o estalar de chicotes invisíveis sobre os corpos cansados de trabalhar e sobreviver.

É uma cena de horror cotidiano, uma naturalização onde a desigualdade se mostra grotesca, a indiferença se transforma em violência explícita e onde a impotência da população é esmagada pela opulência lúdica daqueles que deveriam proteger, mas apenas brincam com a dor alheia. A hiperinflação corroía os salários, a redemocratização engatinhava e a desilusão com a política permeava a vida cotidiana. Nesse cenário, o assalto transcende o gesto desesperado: torna-se resistência, um ato simbólico de cidadãos pressionados a buscar justiça com as próprias mãos. E, naquela realidade fictícia, os cidadãos compreendem a subjetividade do ato e aplaudem o gesto.

A estética da produção reforça esse contraste. Cores vibrantes, luz calorosa e enquadramentos precisos sugerem otimismo, enquanto por baixo da superfície pulsa uma tensão constante. Como uma panela de pressão, o país fervia internamente: a indignação escapava em pequenas brisas e qualquer descuido podia fazer tudo explodir. O filme capta esse limiar entre controle e caos, mostrando que, mesmo em meio à instabilidade, persistem a humanidade, a coragem e a busca por dignidade.

Murilo Benício é o fio condutor dessa tensão. Ele não só traduz como transcreve esse sentimento com o corpo. Como o jornalista que se vê inesperadamente no centro do assalto, ele encarna o choque entre impotência e protagonismo, entre desilusão e responsabilidade. Ao assumir o controle da situação, transforma-se em símbolo e espelho do público: um homem comum convertido em herói improvisado.

Ao lado dele, Christian Malheiros, Matheus Macena e Robson Nunes equilibram humor e fragilidade, revelando personagens que não são criminosos: um é inocente demais, outro ingênuo demais e o terceiro apenas irritado demais. São cidadãos empurrados às margens da lei por um sistema falho. Suas interações são orgânicas, e o despreparo diante do crime gera momentos genuinamente cômicos, sem diluir o peso social da narrativa, justamente por evidenciar o improviso na execução do plano e a ausência de uma elaboração efetiva. Cada um carrega uma fragilidade reconhecível: o trabalhador exausto de tanta exploração, o jovem sem perspectiva, o homem comum empurrado para o abismo. É nesse terreno humano que o filme floresce, onde a ingenuidade vira força e a raiva se converte em empatia.

A direção de Belmonte aposta em contrastes vívidos e num olhar afetuoso sobre o cotidiano, captando a luz da precariedade e o brilho possível de um povo que sobrevive na contramão do colapso. A esperança nasce nos gestos pequenos, na raiva que se transforma em coragem, no povo que decide tomar o próprio destino nas mãos. É dentro desse contraste que o filme humaniza o ato do roubo, mais do que justificado dentro e fora da tela, transformando o assaltante em cidadão revoltado com as injustiças impostas pelo governo: o criminoso torna-se consequência direta de um roubo institucionalizado, um eco da miséria herdada do regime militar e da desigualdade do pré-Plano Collor.

Surge, então, o “Robin Hood brasileiro”: alguém que rouba não por ganância, mas por indignação. Essa inversão moral confere ao filme sua potência emocional. Ao contrário do estereótipo do criminoso como ameaça, o assalto é apresentado como um grito de sobrevivência, um gesto político nascido da sensação coletiva de abandono.

Benício entrega uma das atuações mais humanas de sua carreira como Paulo: desiludido, um homem que perdeu a fé e, obviamente, o tesão na própria profissão. Ao se ver no epicentro de um caos televisivo, reencontra propósito através da admiração popular. Há uma ironia fina nessa transformação: o mesmo abutre que noticiava tragédias torna-se manchete. Ao ser elevado a símbolo pelo público, o filme expõe o ciclo de uma sociedade que fabrica heróis a partir do desespero, um rockstar improvável moldado pela urgência coletiva.

A grande virtude de “Assalto à Brasileira” está em resgatar um tempo em que o Brasil ainda acreditava na possibilidade de mudança, confrontando esse sonho com o cinismo atual da polarização. O diretor enquadra o caos com linguagem direta e simbólica, costurando humor e tragédia com a delicadeza de um retrato popular. A câmera observa mais do que acusa, e nessa observação reside a crítica: um país que repete erros enquanto o povo continua a ser empurrado para o abismo da necessidade.

Talvez o gesto mais ousado do filme seja mostrar o amor pelo coletivo não como sentimento abstrato, mas como linguagem. O vínculo entre personagens nasce da dialética entre palavra e ação, imaginação e toque, revolta e esperança. Cada gesto, cada decisão comunica, cada plano é metáfora do que significa resistir, acreditar e transformar.

No final, o longa dialoga com obras que buscam entender o Brasil pelo caos: há ecos de “O Som ao Redor” na forma como o barulho social atravessa o cotidiano e de “Tropa de Elite” na exposição do poder podre das forças de segurança. Mas “Assalto à Brasileira” encontra voz própria ao transformar o crime em gesto de humanidade.

É cinema que nasce da rua e fala com o coração aberto, onde a utopia é precária, mas ainda possível. Independentemente de partido político, quando o Estado é o ladrão, sonhar ou reagir torna-se, no criminoso, o último ato de justiça que resta ao povo.