Por Hyader Epaminondas

Uma produção Netflix com estreia na 49ª Mostra SP, “O Filho de Mil Homens”, dirigido por Daniel Rezende, é, em essência, um Pinóquio à beira-mar: uma fábula sobre o desejo de existir através do afeto, de ser visto e acolhido em meio à solidão.

Adaptado do livro homônimo de Valter Hugo Mãe, o filme encontra em sua origem literária o tom de parábola e o traduz para o cinema através de imagens que respiram humanidade, vulnerabilidade e reencontro. Rezende constrói uma narrativa feita de capítulos que se entrelaçam de maneira assíncrona, carregados de ausências e de silêncios, revelando personagens unidos por uma necessidade comum: a de amar e ser amado.

A história tem início com Crisóstomo, pelos olhares sensíveis e de cachorro caramelo de Rodrigo Santoro, um pescador de meia-idade que se vê pela metade e que deseja ser pai. Sua solidão não é amarga, mas reflexiva. O mar, sempre presente, se torna o espelho de sua carência e também o ventre simbólico de uma nova existência. Em cada bater de ondas, há uma tentativa de renascimento; em cada rede lançada, a esperança de capturar um sentido.

Quando encontra Camilo, que ganha vida através de Miguel Martines, um órfão que carrega no olhar o mesmo vazio, nasce entre eles uma relação que extrapola o vínculo biológico. É ali que o filme encontra sua primeira tradução do amor: o gesto que escolhe, o afeto que não é imposto, mas aprendido, um amor que se manifesta no simples ato de cozinhar, ao preparar a geleia de jabuticaba, preenchendo, aos poucos, o vazio que habita o menino.

Ao redor desse encontro, a narrativa apresenta outros rostos, outras linguagens de amor que completam o mosaico humano proposto por Rezende. A Isaura, interpretada pela dupla Rebeca Jamir e Lívia Silva em momentos diferentes da vida, representa a redenção da mulher que carrega o peso do trauma, mas que reencontra em si o poder de amar sem culpa.

Antonino recebe de Johnny Massaro um olhar inseguro e perdido, com o peito cheio de borboletas. É o homem aprisionado pelo silêncio, a personificação do amor que não ousa se expressar por medo do julgamento. Sua trajetória é uma das mais simbólicas: ele se liberta quando entende que amar, antes de tudo, é permitir-se existir como se é.

Entre os personagens que orbitam essa teia de afetos, Juliana Caldas entrega uma atuação fenomenal, uma presença carregada de ironia e deboche que transcende a matéria. Sua personagem é o ponto de origem de um amor que persiste mesmo na ausência, como uma chama que insiste em permanecer acesa sob o vento da perda.

Em papéis igualmente marcantes, Grace Passô e Inez Viana tecem o amor de mãe como quem borda à mão um mapa incompleto: incapazes de decifrar totalmente seus filhos, ainda assim percorrem cada traço com dedicação incondicional.

Cada personagem surge como uma forma de amor distinta: a amizade, o perdão, o acolhimento, o desejo de pertencer. Em conjunto, eles expandem a noção de família e constroem um retrato coletivo daquilo que Daniel Rezende parece defender desde o início: o amor como gesto comunitário, uma força que não se explica, mas se compartilha.

A importância das linguagens do amor para gerar conexão

A fotografia naturalista enfatiza o calor humano que emana dos encontros, enquanto o uso da luz dourada e das texturas do litoral português confere ao longa uma beleza terrosa, imperfeita, viva e recheada de rochas sólidas, porém moldadas com esmero. O mar, as redes de pesca, os barcos e a areia formam o vocabulário simbólico de Rezende: metáforas que falam sobre o ciclo do amor, o lançar, o esperar, o recolher, o recomeçar.

Entre camadas de experiências distintas, emerge um ser pulsante, em constante mutação, que cresce com cada nova peça de roupa adicionada no varal. O diretor assina aqui a sua obra mais madura. Nessa adaptação, ele substitui a ironia pelo silêncio, a pressa pela contemplação. A montagem fragmentada, feita de capítulos que se tocam sem se fechar, reflete a natureza fluida das relações humanas. Ninguém pertence a ninguém; o que existe é o trânsito constante entre afetos, a escuta e a tentativa de se conectar com o outro.

A grande força do filme está em transformar a ideia abstrata de “linguagens do amor” em gesto, corpo e olhar. Há o amor que acolhe, o que perdoa, o que espera e o que se recusa a morrer mesmo quando o outro se vai. O amor que nasce da amizade, o amor que cura, o amor que só existe na escuta. Essas diferentes formas se encontram e se transformam mutuamente, criando uma sensação de continuidade como ondas que se sobrepõem, nunca idênticas, mas sempre conectadas.

É sobre como o amor se aprende. Amar, no universo de Rezende, é escutar, é aceitar o ritmo do outro, é permitir-se ser tocado pela presença do diferente. A multiplicidade de afetos é o que dá forma ao coletivo, o que permite à solidão se converter em pertencimento. O filme não busca responder o que é o amor, mas mostrá-lo em suas variações e se utiliza de um homem com poucas palavras como ponte, ao fazê-lo reafirmando que é através dessas pequenas conexões que seguimos existindo.

No desfecho, quando o mar retorna como imagem de síntese, a fábula se completa. Todos são filhos de mil homens e de mil amores. Somos feitos das partes que os outros deixaram em nós e é nessa soma imperfeita que nasce o humano. “O Filho de Mil Homens” é, assim, um filme sobre o amor como força criadora, sobre o querer como linguagem e sobre a coragem de recomeçar sempre, mesmo quando tudo parece já ter sido perdido.