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Exibido na 49ª Mostra SP, longa apresenta um olhar afiado sobre o silêncio, a amizade e o cotidiano pós-trauma
Por Lilianna Bernartt
“Sorry, Baby”, estreia da comediante Eva Victor na direção, traz um show de humanidade a um tema acerca do qual o cinema recente vem tentando recuperar sua vividez discursiva: o trauma feminino. Sua proposta traz a dor, o abuso, a denúncia de uma forma completamente arrebatadora e imprevisível — através do silêncio posterior, o resíduo, o que sobra quando a vida precisa continuar. Agnes (interpretada pela própria diretora) é uma professora de literatura que vive cercada de livros, colegas, árvores e silêncios. Nada em seu entorno grita trauma; tudo o carrega. O filme começa já no “depois”, e o passado chega como uma dobra, aquilo que não se fecha.
O interessante da narrativa de “Sorry, Baby” é o deslocamento do foco da ferida para a sobrevivência. O que significa existir depois de ter sido ferida — não enquanto vítima, mas como alguém que precisa pagar contas, rir de piadas ruins, corrigir provas, aceitar o corpo novamente. A comediante começou sua carreira fazendo vídeos de humor para a internet, os quais, caso você já tenha visto algum, saberá que são carregados de tons estranhos, sem euforia, de um humor que nasce do constrangimento e da lucidez. E ela aplica isso de forma brilhante em sua Agnes, que ri porque entende o absurdo e a hipocrisia da vida acadêmica, dos pseudo-progressistas, da solidariedade feminina seletiva e burocrática que se resume a protocolos de empatia, como em uma cena, por exemplo, em que duas mulheres que trabalham na administração da universidade em que ela estuda explicam que nada pode ser feito contra o professor abusador, “mas que entendem o que ela sente”. É uma crítica afiada e um riso atravessado: a comédia como forma de desarmar o sistema que usa o feminismo como verniz de poder.
O filme é todo construído por contrastes. Uma câmera que busca o naturalismo, mas os cortes são secos; a estrutura é fragmentada, feita de capítulos que saltam no tempo — como a memória que insiste em invadir o presente. Em vez de reviver o ato violento, Eva Victor o filma de fora, deixando o céu escurecer atrás da casa. Um dos momentos mais lindos e fortes do filme, justamente por mostrar aparentemente nada. A ausência retratada pela imagem.
Parte importante do filme também está na relação entre Agnes e sua melhor amiga Lydie (Naomi Ackie). A amizade funciona como um eixo moral do filme: é onde o riso tem espaço, onde o corpo volta a ser tocado sem ameaça. Lydie é a personificação, a prova concreta de que o afeto entre mulheres pode ser um lugar de reinvenção, não apenas de escuta. Juntas, elas riem, choram e fingem que a vida é leve — o que acaba até mesmo ficando, às vezes. Essa intimidade é o que o filme tem de mais revolucionário: a ideia de não imputar a responsabilidade da cura no indivíduo, mas dividir o peso de forma coletiva.
Há também um olhar social que atravessa a narrativa. Agnes é mulher, professora, intelectual, em um ambiente que valoriza o mérito, mas silencia o abuso. A universidade representa um microcosmo do contemporâneo: progressista no discurso, medieval na prática. A violência é estrutural, elegante, sem gritos. É o abuso travestido de civilidade.
Ainda assim, Agnes não esmurece. Busca o desejo, o humor, a vida. Quando Agnes se envolve com o vizinho Gavin (Lucas Hedges), o filme questiona o clichê da mulher quebrada que teme o toque. O sexo é filmado sem culpa, sem redenção. Apenas duas pessoas experimentando o prazer na medida do que lhes é possível, de forma natural.
Cinematograficamente, “Sorry, Baby” é simples e sofisticado ao mesmo tempo. A fotografia fria, quase pálida, revela um mundo aparentemente ordenado, mas o enquadramento sempre retrata algo de estranho. Os planos longos dão espaço ao desconforto.
No fundo, o que Eva Victor faz é garantir complexidade a um tipo de personagem que já vimos retratada por muitos vieses: a mulher traumatizada. Agnes não é heroína nem vítima; é uma mulher tentando existir. “Sorry, Baby” entende que a vida pós-trauma não é épica nem exemplar — é repetição, esforço, ironia, silêncio e, muitas vezes (ainda bem), um riso que surge absolutamente do nada. O filme fala sobre a dificuldade de seguir, mas também sobre a liberdade que existe nesse “continuar”. É uma obra pequena, íntima, bem-humorada e necessária porque lembra que a superação, de fato, é, na real, a mera sobrevivência.
O filme foi assistido durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
 
                             
                                                                                                


