‘Gravidade’: o surrealismo à moda da casa pernambucana
Exibido na 49ª Mostra SP, filme Leo Tabosa orquestra um suspense intenso sobre quatro mulheres que confrontam o passado às vésperas do fim do mundo
Por Hyader Epaminondas
Em “Gravidade”, Leo Tabosa transforma o apocalipse em uma experiência íntima e doméstica, onde o colapso cósmico se reflete nas relações humanas. À sombra de uma tempestade solar que ameaça desestabilizar a gravidade da Terra, o diretor nos confina dentro de uma mansão em que o tempo, o espaço e os afetos parecem se desintegrar lentamente. As personagens, mãe, filha, amiga misteriosa e empregada, orbitam umas às outras como corpos em um campo gravitacional prestes a ruir.
Conforme o equilíbrio se rompe, o que era fixo começa a flutuar: papéis sociais, vínculos de poder e segredos de família perdem o peso que os mantinha presos. Nesse descontrole, surge a vertigem. As quatro mulheres, sem chão, parecem deslizar rumo a descobertas inimagináveis, como se cada revelação fosse um passo no vazio, um mergulho no desconhecido que habita dentro delas mesmas.
É ali que vivem Nina, interpretada por Hermila Guedes, sua mãe Sydia, vivida por Clarisse Abujamra, a empregada Joana, papel de Marcélia Cartaxo, e Lara, personagem de Danny Barbosa, que chega para uma visita aparentemente inofensiva, no pior momento possível. O que deveria ser abrigo se transforma em prisão emocional, onde cada aceno carrega o peso das gerações e das hierarquias.
A casa, ampla e imponente, é um personagem vivo. Cada corredor ecoa lembranças, cada porta tranca um segredo. Tabosa a filma como um organismo que respira, range e se encolhe. O espaço físico, inicialmente vasto, parece encolher conforme as tensões aumentam. A câmera acompanha esse encolhimento, comprimindo corpos em planos cada vez mais fechados, até que o ar se torna rarefeito, principalmente no subsolo, quando acaba a energia.
A mansão, com sua imponência decadente, deixa de ser cenário e passa a ser sintoma, uma representação do peso do passado que insiste em se manter de pé, mesmo quando o mundo lá fora ameaça ruir. Sua estética parece saída de um episódio apocalíptico de “Sai de Baixo”: um amontoado de móveis feios, cortinas pesadas e cores saturadas que beiram o delírio. É o cafona elevado à condição de linguagem, uma breguice tão absurda que se torna quase metafísica. O exagero visual não apenas diverte, mas denuncia a artificialidade das aparências, revelando que o colapso começa justamente naquilo que tenta parecer sólido demais.
É na cozinha que surge a primeira rachadura, discreta, quase um detalhe. Aos poucos, o pequeno furo na parede cresce e se expande como uma ferida exposta, abrindo um vazio que parece vir de outro tempo ou de outro plano. Não é por acaso que o epicentro do colapso nasce justamente ali. A cozinha, esse espaço tradicionalmente reservado ao trabalho e à intimidade, é o território onde as aparências sociais cedem. É o cômodo onde se cochicha o que não se pode dizer na sala, onde as pessoas se despem das posturas e revelam o que realmente pensam.
Essa escolha ecoa, em certa medida, o mesmo gesto político de “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. Lá, a cozinha era palco da tensão entre a patroa e a filha da empregada; aqui, ela se torna uma fenda simbólica na estrutura social e emocional dessas mulheres. O espaço que antes sustentava a ordem doméstica se transforma no ponto de ruptura: um buraco que engole o que há de mais reprimido e faz emergir o que estava encoberto sob camadas de culpa, classe e tradição.
À medida que a rachadura cresce, o real começa a se dobrar sobre si mesmo. A casa respira, range, parece reagir. É como se o próprio cenário não aguentasse mais o peso das convenções que o sustentam. A cozinha, lugar de serviço e de confissão, torna-se um portal de libertação: o limite entre o mundo das aparências e o abismo do que realmente somos.
O apocalipse como espelho da casa brasileira
A sensação de claustrofobia não vem apenas do confinamento, mas da densidade das relações. Mesmo dentro de uma casa enorme, há pouco espaço para respirar. Os cômodos parecem cada vez menores, e o som da tempestade solar do lado de fora se mistura aos ruídos do interior: respirações, sussurros, palavras atravessadas. Tabosa trabalha o som e a luz como forças em conflito: o clarão que invade os cômodos ilumina verdades antigas, enquanto as sombras insistem em apagar o que é dito.
O elenco se entrega por completo a esse turbilhão. Hermila Guedes carrega em Nina a tensão entre a filha privilegiada que tenta escapar da mediocridade e a mulher que reconhece o peso das raízes. Clarisse Abujamra dá à mãe um tom de desespero contido, um tipo de autoritarismo que nasce do medo de perder o controle. Marcélia Cartaxo faz de Joana o eixo emocional do grupo, uma figura que observa e absorve as ruínas ao redor e tenta remendar erros do passado.
Já Danny Barbosa, com sua presença inquieta, quebra a dinâmica do lar e traz o olhar externo, o elemento que destampa a panela prestes a explodir. E, quando Helena Ignez surge em cena, sua presença reverbera como um eco do cinema marginal, uma entidade que atravessa tempos e linguagens, lembrando que o delírio também é forma de liberdade.
“Gravidade” é, antes de tudo, um filme sobre colapso. O colapso da Terra, das famílias, das estruturas sociais e do próprio cinema enquanto espaço de lógica. O diretor encena o fim do mundo como um ato de libertação, em que o caos é necessário para o nascimento de algo novo. A rachadura que cresce no coração da casa não destrói apenas paredes, mas abre um portal simbólico para o que estava sufocado.
Entre o riso e o desespero, o grotesco e o sublime, o explicável e o inexplicável, “Gravidade” mergulha no surrealismo como linguagem de verdade. Tabosa cria um armagedom doméstico que é, ao mesmo tempo, comédia de erros e ritual de purificação. O mundo pode estar acabando, mas dentro daquela casa o colapso já começou faz tempo.
É nesse desabamento, nesse buraco que se alarga na cozinha, que a gravidade se inverte: já não puxa para baixo, mas empurra para dentro, para o abismo íntimo de quem perde o chão. O filme sugere que renascer exige essa suspensão, aceitar o vácuo, flutuar entre a queda e o voo, e descobrir, no vazio, um novo modo de existir.



