O multiverso desequilibrado da segunda temporada da série ‘Pacificador’
Entre piadas fálicas e bons momentos, James Gunn oscila no tom e prejudica a evolução de John Cena
Por Hyader Epaminondas
Existem personagens que brilham sozinhos, sustentados por décadas de histórias memoráveis. “O Pacificador”, no entanto, nunca foi um deles. Criado nos quadrinhos como um mercenário genérico pelos escritores Joe Gill e o artista Pat Boyette para a Charlton Comics em 1966, armado apenas com o colorido da fantasia e um arsenal de fogo, dificilmente teria alcançado o espaço que ocupa hoje sem o carisma nuclear de John Cena. É ele quem, pouco a pouco, vem construindo uma trajetória sólida, dentro e fora do universo da DC.
Mas esse avanço esbarra na cabeça infantil de James Gunn, que transforma a segunda temporada em um verdadeiro multiverso da lacração. O diretor insiste em reduzir o personagem a um festival de piadas fálicas sem graça, que não apenas minam a dramaticidade conquistada na primeira temporada, mas também corroem momentos que poderiam ecoar com densidade simbólica. Cada mergulho emocional é interrompido pelo besteirol previsível, como se a jornada do herói estivesse condenada a ser refém de um humor de quinta série.
Ainda assim, há algo de magnético na trajetória. Cena sustenta a temporada com uma carga dramática proporcional ao tamanho do próprio braço, mostrando evolução como ator e provando que o “Pacificador” pode carregar nuances além da caricatura. A narrativa em si é envolvente e funciona quando o drama respira, mesmo que Gunn, em sua ânsia de escracho, não saiba a hora de parar.
A segunda temporada funciona como ponte entre o antigo DCEU e o novo DCU. Os eventos têm raízes diretas no segundo filme do “Esquadrão Suicida”, quando o Pacificador matou Rick Flag Jr., desencadeando a vingança de Rick Flag Sr., que assume o papel de antagonista principal nesta temporada. Essa conexão dá peso às motivações dos personagens e intensifica o drama interno do herói Christopher Smith, que precisa lidar não apenas com suas ações passadas, mas também com as consequências emocionais e psicológicas que se refletem em suas viagens pelo multiverso.
A trilha sonora continua fenomenal, com a música-tema “Oh Lord”, da banda Foxy Shazam, assumindo destaque. Com seu ritmo enérgico e letra carregada de tensão, a faixa acompanha a descoberta de um mundo alternativo mais positivo, que contrasta com o passado traumático do Pacificador, ao mesmo tempo em que ressalta o embate interno do herói e o força a decidir seu futuro de forma mais pessoal.
Em vez de se apoiar em batalhas explosivas típicas do gênero, a série usa essas jornadas para confrontar os personagens com versões alternativas de si mesmos, mostrando como seriam suas vidas em outros universos. Essa abordagem mexe profundamente com o psicológico, forçando cada um a lidar com suas escolhas, arrependimentos e potencialidades, enquanto o humor e a lacração multiversal funcionam como contraponto, ora aliviando a tensão e ora lembrando que nem tudo pode ser levado tão a sério.
Seis protagonistas, uma “suruba” bem temperada!
O elenco secundário brilha na química coletiva, mas é Emilia Harcourt, interpretada por Jennifer Holland, quem se destaca como ponto de equilíbrio emocional dentro do caos. Sua presença traz camadas de seriedade e humanidade que dialogam diretamente com a crise de identidade do Pacificador, evitando que tudo se perca no escracho.
Ao lado dela, o sexteto formado pelo inseguro Economos, interpretado por Steve Agee, Leota Adebayo, de Danielle Brooks, e Vigilante, que ganha vida pela ingenuidade ácida de Freddie Stroma, continua a desenvolver as trajetórias que começaram na primeira temporada, reforçando vínculos e aprofundando relações que dão consistência ao grupo, mesmo assumindo uma posição de carona na narrativa principal comandada pela dupla Pacificador e Harcourt.
Quando o humor foge do eixo fálico para apostar em ideias mais inventivas, como na piada da cegueira aviária e no protagonismo dado a Eagly, a águia-careca mais popular do streaming, a série acerta em cheio. São nesses momentos que surge a possibilidade de transcender o rótulo do besteirol e encontrar um equilíbrio mais maduro entre irreverência e profundidade.
A introdução de novos personagens, como o agente da ARGUS Langston Fleury, interpretado por Tim Meadows, lidando com um curioso problema de cegueira aviária, é um excelente exemplo de personagem memorável dentro da narrativa. Ao mesmo tempo, o retorno de rostos familiares, como a versão alternativa da família do protagonista neste novo universo da DC, adiciona uma pitada sutil de complexidade e tempero ao drama, sem sobrecarregar a trama.
Robert Patrick, como Auggie Smith, uma versão alternativa do pai do protagonista, introduz uma reflexão interessante sobre ideologias, posicionamento civil e a necessidade de escolher lados em meio ao caos ético daquela realidade. No entanto, essa discussão se perde devido à pressa do diretor em encerrar o arco com uma piada, impedindo que o conflito ganhe a densidade que mereceria.
John Cena enfrenta Christopher Smith: quem dominará o ringue?
A segunda temporada de “Pacificador” é um retrato curioso de reciprocidade artística. Um herói que nunca foi protagonista de grandes histórias finalmente encontra em John Cena a chance de existir com relevância. A trajetória de Smith, marcada por um passado genérico e carente de profundidade nos quadrinhos, ganha corpo e significado graças à presença e ao carisma de Cena. As nuances dramáticas de cada momento de crise de identidade do herói são amplificadas pela interpretação do ator, que consegue transformar um personagem inicialmente limitado em alguém capaz de sustentar sozinho a narrativa.
Por outro lado, o ator encontra no capacete cromado uma oportunidade rara de se afirmar para além do ícone que interpreta. Ao retirar esse refúgio metálico, ele se expõe de fato como intérprete, permitindo que a atuação aconteça com o rosto limpo, sem o escudo da fantasia. A série permite que ele explore camadas emocionais e dramáticas, mostrando evolução além do físico e do humor escrachado pelo qual é mais conhecido.
Mesmo sobrevivendo às piadas sem graça de James Gunn, Cena consegue imprimir peso e humanidade ao “Pacificador”, revelando uma rara simbiose entre ator e personagem. Entre falha e virtude, piada e drama, é nesse equilíbrio que a segunda temporada encontra sua razão de existir.



