‘De Lugar Nenhum’, documentário biográfico acompanha Valter Hugo Mãe em sua busca pela palavra
Exibido na 49ª Mostra SP, o filme de Miguel Gonçalves Mendes propõe uma jornada íntima sobre escrita, identidade e arte em movimento
Por Lilianna Bernartt
“De Lugar Nenhum”, documentário do diretor luso Miguel Gonçalves Mendes sobre o escritor Valter Hugo Mãe, ganhou uma sessão especial na Cinemateca Brasileira que foi muito além da exibição do filme: transformou-se em uma reunião de pensamento. Após a projeção, aconteceu uma conversa que reuniu o escritor e a cartunista Laerte — que também aparece no longa — em um encontro que discutiu fronteiras entre cinema, literatura, processo e vulnerabilidade.
Filmado ao longo de anos em múltiplos territórios — da Islândia a Macau, passando por Brasil e Colômbia —, o documentário acompanha Valter Hugo Mãe em deslocamento físico e interior. Mais que “biográfico”, o filme é uma espécie de cartografia emocional em que vemos a escrita como travessia, como permanência no entre-lugar. Em vez de explicar o autor, o filme o observa em estado de procura, enquanto escreve sua nova obra — o que o torna mais experiência do que retrato.
“De Lugar Nenhum” não encara a biografia como arquivo, mas como presença em formação. Em vez de empilhar fatos sobre Valter Hugo Mãe, o filme prefere acompanhar o escritor em sua busca pela palavra, e justamente essa recusa pelo “perfil” torna o documentário mais íntimo, a partir do momento em que não há a obrigação de se apresentar, o que coloca o escritor e o público em uma relação de maior proximidade — como se já nos conhecêssemos e tivéssemos a liberdade de aprofundar nossa relação.
Entre hesitações, intimidades, rascunhos, deslocamentos, o que poderia ser um making of vira dramaturgia. A aparição de Laerte funciona como uma propagação desse gesto: ela não legitima o percurso, mas o tensiona de forma afiada e horizontal. Laerte é o espelho lúcido, presença que pergunta mais do que responde. Assim, infância, fé, corpo e linguagem não surgem como tópicos, mas como inevitáveis atritos da vida.
Na Cinemateca Brasileira, essa performatividade do processo ganhou continuidade fora da tela. A sessão especial do filme foi seguida por um papo entre Valter Hugo Mãe e Laerte, em um encontro afetuoso e aguçador de ideias. O ofício como risco, o desenho e a escrita como modos de aparecer e desaparecer, a identidade como trânsito e não como morada. O público assistiu a uma conversa que não “explica” o longa, mas prolonga sua reverberação.
“De Lugar Nenhum” aposta em uma mise-en-scène do intervalo — o entre-lugar em que uma ideia começa a vibrar antes de ganhar forma. E o filme sustenta essa suspensão sem ceder ao didatismo. A fotografia abraça a geografia emocional do processo com uma montagem que confia no vazio como elo.
No fim de tudo, a sensação é a de conhecer mais do que o escritor Valter Hugo Mãe em seu processo de criação, mas de ter compartilhado com ele um estado, uma vivência em que estar perdido pode ser também uma forma de estar inteiro.



