Guillermo del Toro recria ‘Frankenstein’ como sua obra-prima sobre monstros e criadores
Após passagem pela 49ª Mostra SP, o filme estreia nesta quinta (23) em cinemas selecionados antes de chegar à Netflix
Por Hyader Epaminondas
A história de “Frankenstein” já ultrapassou as páginas do romance gótico original e ganhou vida própria nas incontáveis adaptações que moldaram a imagem da criatura ao longo dos séculos. Mas o que torna essa versão diferente das demais é que, desde criança, Guillermo del Toro sonhava em dar forma à sua própria versão da criatura.
A sua filmografia, repleta de monstros incompreendidos e de uma humanidade profundamente inocente, é como se, desde o início, ele viesse se preparando para esse momento, como um ensaio sobre o ato de criação e sobre o que nos torna humanos. O romance de Mary Shelley era um manual de obsessão, criação e abandono que moldou sua imaginação e seu modo de ver o mundo.
Aqui, o monstruoso nunca reside na carne deformada, mas no olhar que a julga. O verdadeiro monstro se desloca, habitando os corpos e gestos daqueles que agem movidos pela crueldade, pela negação, vaidade ou pelo medo do diferente. Essa tensão entre fascínio e repulsa, entre o criador e sua criatura, entre o homem e aquilo que teme reconhecer em si mesmo, percorre toda a obra de Del Toro. O horror se embala na poesia, não no outro corpo, mas no reflexo que ele nos devolve.
Nesta adaptação, o diretor se torna, de certo modo, um Victor Frankenstein movido pela ambição e pelo desejo de realizar um sonho antigo, e o resultado dessa sublimação, por sua vez, se apresenta como sua criatura: ganha forma e personalidade própria, mas carrega, em cada gesto, cada ideia e cada emoção, a presença do criador. E, ao contrário do cientista de Shelley, Del Toro não rejeita sua criação — ele a acolhe com ternura, completando um ciclo que é, ao mesmo tempo, artístico e profundamente humano.
Ele utiliza a anatomia humana como linguagem para refletir sobre o que significa estar vivo e ser humano, evoluindo a cada nova experiência que se revela na tela. A carne não é apenas exibida em sua materialidade, com efeitos práticos e texturas viscerais, mas também dissecada como espelho das emoções dos protagonistas, revelando, nas fibras, nos impulsos e nas feridas, o que há de mais íntimo na condição humana, enquanto se discute sobre o desejo e o que existe além dele.
Assim como no livro, a relação entre criador e criação se torna simbólica, e o filme reflete não apenas a história da criatura, mas a própria obsessão de Del Toro, sua infância, suas inspirações e sua sensibilidade estética. O paralelo é inevitável: assim como Victor busca ultrapassar limites científicos e humanos, Del Toro transcende décadas de sonhos para materializar seu imaginário gótico.
Victor Frankenstein surge na tela como um homem consumido pelo próprio ego e pela dor de um gênio limitado pelos dogmas de seu tempo, conduzindo experimentos que quase se confundem com rituais sagrados. A atuação de Oscar Isaac é tão intensa e precisa que ele se torna, ele próprio, um homúnculo de Victor, uma extensão viva do criador e de suas obsessões.
Seus movimentos revelam obsessão, sempre mirando além do horizonte, mas, assim que alcança o topo do cume e dá vida à sua criação, a paleta de cores denuncia o desbotar de sua vaidade: o vermelho, antes pulsante, se dilui sob a culpa, a frustração da realização e o medo do abandono, justificado pelo prelúdio que revisita a sua infância como uma ferida de origem. Nesse instante, ele se transforma no próprio pai, incapaz de romper o legado da violência e projetando sobre sua criatura todo o ciclo que o consumiu, perdendo sua vitalidade e assumindo, inconscientemente, o papel do progenitor que sempre temeu em sua infância.
A interpretação transmite uma intensidade contida, e a humanização característica do diretor investe mais carinho em Victor do que na própria criatura. Quase um metacomentário do próprio realizador, imerso em empatia, cuidando do personagem mesmo quando deveria infligir sofrimento para dar seguimento ao arco de redenção.
É uma fusão de genialidade e fragilidade que reflete o fascínio do diretor pelo estranho familiar. O horror não reside apenas na criatura, mas na incapacidade do criador de compreender plenamente as consequências de seus atos.
O Sonho do Criador
A atmosfera gótica de Del Toro se espalha como um miasma, impregnando cada átomo do quadro, sobretudo nos detalhes mínimos, onde o excesso de sangue nas calçadas coagula como memória apodrecida. Os múltiplos cenários, por si só, contam uma história própria com a quantidade absurda de detalhes.
Há algo de sagrado e profano nessa ênfase no vermelho, espesso, tão visceral que o cheiro do sangue seco parece atravessar a tela e contaminar o ar, como se a própria realidade se deteriorasse diante do olhar, nessa história que, apesar de já ser conhecida, acaba ganhando novas camadas pela sensibilidade do diretor.
A trajetória de criador e criatura se entrelaça como dois reflexos no mesmo espelho trincado. À medida que o filme avança, suas identidades se confundem e se invertem: Victor, antes um inventor iluminado pelo fogo da criação, vai se tornando uma casca oca, um homem que tocou o próprio sonho apenas para sentir o eco do vazio que o habita. A criatura, por sua vez, nasce sem forma e sem sentido, mas, aos poucos, se preenche de mundo, de dor e de desejo, reinventando a própria existência e devolvendo à vida o significado que seu criador perdeu.
A criatura, construída como reflexo emocional do próprio criador, ganha vida própria com a atuação de Jacob Elordi. Cada movimento desengonçado e olhar inocente transmite abandono, fome de pertencimento e, ao mesmo tempo, sede por conhecimento e uma melancolia quase tangível. A forma costurada e as cicatrizes são metáforas da memória conturbada e do trauma agudo, lembrando que a verdadeira monstruosidade não está na aparência, mas na rejeição social e emocional do seu criador. O monstro evoca a criança perdida de “O Labirinto do Fauno”, o ser sensível de “A Forma da Água” e o marginalizado que Del Toro sempre humanizou, transformando o grotesco em poesia visual.
Mia Goth surpreende como Elizabeth, funcionando como consciência ética e limite moral das ações de Victor, e a tocha de luz que ilumina o caminho do desejo da criatura. Ela traduz responsabilidade, dor e cuidado, mostrando que a humanidade do criador e da criatura depende daqueles que funcionam como bússolas morais. Sua atuação é, ao mesmo tempo, delicada e firme, lembrando que a ética e a empatia não podem ser terceirizadas, e que a criação, seja científica ou narrativa, sempre carrega consequências.
A figura de Harlander, interpretado por Christoph Waltz, se apresenta como um presságio silencioso para Victor: um facilitador com aspirações traiçoeiras, de punho fechado, e a encarnação do preço por transformar obsessão em criação. Seu corpo em ruína, consumido de fora para dentro, reflete o esgotamento da alma que desafia os limites do natural em nome de um ideal puramente vaidoso.
A Anatomia da Criatura
O castelo em decomposição, o laboratório repleto de restos de maquinários, tons sombrios e luz filtrada transformam o espaço em corpo pulsante, em memória viva, roubando a cena todas as vezes que o enquadramento permite tempo para se deleitar com todos os elementos no cenário. Os detalhes grotescos ecoam com uma introspecção que transforma o horror físico em psicológico. O corpo da criatura, colcha de retalhos de humanidade, é símbolo da fragilidade de qualquer criação, cada cicatriz e costura carregando dor, memória e identidade.
Del Toro não se limita à estética, e a trilha sonora reforça cada movimento e silêncio, acompanhando o peso emocional de cada momento. O filme se estrutura em três atos como uma meditação sobre criação, abandono e responsabilidade. Cada decisão de Victor e reação da criatura nos força a confrontar o que significa ser humano, o que significa criar, o que significa rejeitar ou ser rejeitado, e como o trauma toma uma forma cíclica de violência até o momento de cura.
Enquanto “Frankenstein” revela o peso da herança e das experiências que nos moldam, o paralelo entre Del Toro e sua criatura cinematográfica se impõe: assim como Victor vê sua criatura como a culminação de sua obsessão, cada detalhe do filme reflete a dedicação quase obsessiva de Del Toro, tornando esta obra não apenas uma criação, mas sua própria obra-prima viva.



