Por Hyader Epaminondas

Em “Eddington”, Ari Aster arquiteta uma ficção que encontra na polarização social um potente objeto de estudo, revelando uma complexa teia de ideologias cuidadosamente articuladas em meio ao caos organizado que marcou o período da pandemia.

A experiência coletiva da COVID-19 deixou marcas profundas gravadas em nossas memórias, decisões e nos pequenos gestos do cotidiano. Cicatrizes invisíveis, mas persistentes, e o filme reflete o que vivemos, o que nos transformou e o que carregamos silenciosamente em nosso inconsciente.

É um filme longo, e ele faz questão de parecer ainda mais longo. Essa dilatação do tempo é completamente proposital e acompanha o desgaste mental do protagonista, em paralelo com a narrativa arrastada que reforça a sensação de exaustão e confusão intencional que acompanha o processo de desinformação, atravessando todas as camadas sociais.

A desinformação no filme age como um vírus paralelo: silencioso, mutante e tão contagioso quanto o próprio agente biológico que a inspirou. À medida que o filme se desenrola, somos expostos a essa mesma lógica, mensagens truncadas, falas desconexas e repetições que parecem inocentes, mas se acumulam até deformar a percepção da realidade. Tudo funciona como um espelho da propagação gradual e corrosiva das falsas narrativas que dominaram o imaginário coletivo naquele momento.

Aster nos lembra de tudo isso ao nos colocar diante de uma cidade pequena do Novo México, comprimida entre o medo e a vaidade, o desespero e a teimosia. O deserto alaranjado e seco que a cerca funciona quase como metáfora: a aridez da paisagem espelha a linguagem áspera e desesperançada da burocracia, onde decisões tardias e políticas equivocadas secam qualquer impulso de sensatez ou compaixão.

Joaquin Phoenix e Pedro Pascal vivem seus personagens com intensidade ritual, num duelo contemporâneo onde os tapas substituem os revólveres nesse faroeste moderno. O xerife e o prefeito se tornam arquétipos de um mundo que se debate entre razão e ego, entre responsabilidade e espetáculo, no mesmo reflexo de uma falácia que disfarça, sob o verniz da moral, a exaltação do próprio ego.

A comédia, tão ácida quanto um limão, que permeia “Eddington” não surge como alívio, mas como lente crítica. O absurdo do cotidiano, o descompasso entre poder e senso comum, transformam-se em riso desconfortável, que faz o público se reconhecer na cena e, simultaneamente, se afastar do espelho.

É um humor que não nos permite escapar de nós mesmos, que nos confronta com a fragilidade da razão diante da incerteza e com a facilidade com que a vaidade política pode se sobrepor à empatia.

Cores saturadas, humanidade seca

A estética de Aster, entre cores saturadas e enquadramentos quase teatrais, alterna entre ângulos amplíssimos, que reduzem os personagens a pequenas presenças no quadro, como se a câmera estivesse observando pacientemente uma colônia de formigas em meio à rotina, e closes claustrofóbicos, que capturam as expressões faciais em detalhe. O resultado amplifica a sensação de desconforto e alerta.

O deserto do Novo México, com seus tons alaranjados e secos, é uma linguagem visual que dialoga com a aridez das relações sociais e da própria burocracia que marca o filme. Cada cena é um estudo sobre poder, medo e humanidade, mas também um lembrete de que, muitas vezes, sobrevivemos ao absurdo mais por instinto do que por lógica.

O estranhamento do espaço durante o distanciamento social revela muito sobre aquele período: o olhar de julgamento dirigido a quem usava a máscara de forma incorreta, com o nariz exposto, e as inúmeras contradições que surgiam nas discussões cotidianas. As teorias da conspiração se multiplicavam, acompanhadas por uma enxurrada de “especialistas” em assuntos aleatórios que apareciam com cada vez mais frequência, até que a própria obrigatoriedade do uso de máscaras passou a ser tratada com um humor irônico.

A ênfase no uso constante dos celulares e nos suportes para eles também chama atenção, refletindo a tentativa de manter algum tipo de conexão em meio ao isolamento. O xerife vivido por Phoenix representa bem o negacionista clássico, isolado dentro da própria cabeça, aquele que se faz de incompreendido e, por motivos próprios, causa confusão para se ver livre das próprias angústias, quando, na verdade, bastaria seguir medidas mínimas de segurança para evitar conflitos desnecessários.

“Eddington” é sobre as distorções que permanecemos carregando, sobre como aprendemos, ou falhamos, a lidar com crises, sobre o quanto a confusão do passado ressoa ainda hoje em nossas vidas. É um filme que dialoga com o presente e nos obriga a confrontar nossas próprias falhas, nossos medos e, paradoxalmente, nossas esperanças como sociedade.

Com um gostinho agridoce, deixa a impressão de que a pandemia não terminou realmente, apenas mudou de forma e assumiu outras pautas. As consequências continuam a nos assombrar, nos ensinar e nos provocar. E, enquanto rimos de seus absurdos, nos lembramos dolorosamente de que esse riso é, na verdade, a própria constatação de nossa vulnerabilidade: seca e alaranjada, como o deserto que nos observa em tela.