por Renata Souza e Henrique Vieira

A recriação da infame gratificação faroeste, que tantas mazelas causou na segunda metade dos anos 1990, foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em votação acalorada neste 23/10, pelo voto da maioria dos parlamentares.

Criada pelo Decreto nº 21.753, de 8/11/1995, a premiação em pecúnia por mérito especial garantia aos policiais civis, militares e bombeiros militares uma gratificação que poderia chegar a 150% sobre seus vencimentos, por atos considerados admiráveis por seus superiores. O decreto não especificava o sentido e o alcance da conduta meritória — sua caracterização ficava a cargo da Administração Pública.

A imprensa denunciava que a premiação havia convertido servidores públicos em ferozes caçadores de recompensa. Afinal, a violência de Estado aumentou em letalidade. A recompensa transformou a retórica criminosa do “bandido bom é bandido morto” em uma prática institucionalizada: o extermínio como política de segurança.

Ao final dos anos 1990, uma pesquisa do Instituto de Estudos da Religião, encomendada pela própria Assembleia Legislativa, sepultou a premiação com base em evidências. O estudo demonstrou que a gratificação não apenas era um completo fracasso como estratégia de controle do crime, mas também promovia o aumento de execuções sumárias e outras violências, sobretudo contra a população pobre e favelada.

A “gratificação faroeste” — apelido criado pelos próprios policiais — representava uma ofensa à inteligência e à Constituição de 1988, além de um atentado contra o Estado Democrático de Direito. O governo estadual propagava a falácia de que matar acusados de crimes poderia ser uma solução para a segurança pública. Dar uma resposta imediata ao medo e ao descontentamento da população transformou indicadores criminais em dividendos eleitorais. Na ausência de uma política de segurança comprometida com a democracia, o governo patrocinava a brutalidade como modo de administrar.

Quase três décadas depois, verifica-se ainda a incapacidade do poder público de equacionar o problema da segurança em bases democráticas. Se, nos anos 1990, a ordem para a matança era algo subentendido, agora se encontra expressa em norma. O projeto de lei aprovado chega ao ponto de empregar o verbo “neutralizar” como critério para a concessão do prêmio, que pode elevar os ganhos dos policiais civis em até 150% de seus vencimentos. A sinalização para o horror não poderia ser mais nítida.

A proposta depende da sanção do governador Cláudio Castro. Apenas a pressão da imprensa e da sociedade civil organizada permite alguma esperança de veto por parte do governador — mesmo sendo uma política aprovada por sua própria base de apoio parlamentar.

O tempo já comprovou que o Estado do Rio de Janeiro jamais superará a violência e o crime com a reprodução, governo após governo, da prática do extermínio. Políticas públicas fiéis aos princípios e valores constitucionais, sim, podem mudar essa realidade. O retorno da gratificação faroeste significa, tão somente, a certeza de novos fracassos e da ampliação da dor e do sofrimento das pessoas mais pobres, negras, faveladas e periféricas.

Essa aposta no fomento à letalidade policial produz, em contrassenso, o suicídio e a corrupção dos próprios agentes do Estado, consequências inevitáveis do estímulo à ferocidade. Ao assumir explicitamente a morte como modo de fazer política, a proposta legislativa se configura em um sinal eloquente da nossa ruína civilizacional.

Ainda há tempo de reverter essa escolha trágica. O Rio de Janeiro precisa ser capaz de imaginar recompensas não como prêmios pela morte, mas como reconhecimento de condutas voltadas à preservação da vida, à ampliação de oportunidades e ao fortalecimento da confiança entre Estado e sociedade.

A vitória contra o crime não virá do gatilho fácil, mas da construção paciente da segurança cidadã, enraizada na promoção da dignidade humana como objetivo maior. Abandonemos, portanto, a crença no faroeste da barbárie em favor da democracia, da vida e da dignidade humana.

*Henrique Vieira é pastor, professor, escritor, poeta e ator, deputado federal e membro titular da Comissão Permanente de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
* Renata Souza é jornalista, escritora, doutora em Comunicação e Cultura, deputada estadual e presidente da Comissão Especial de Favelas e Periferias.