
Entre abduções e absurdos: o universo conspiratório de ‘Bugonia’
Exibido na 49ª Mostra SP, novo longa de Yorgos Lanthimos faz do bizarro um espelho da sociedade e do desejo humano
Por Hyader Epaminondas
Desde “Dente Canino” até “Pobres Criaturas”, o cineasta grego Yorgos Lanthimos vem construindo um cinema que investiga a forma como o ser humano é moldado por estruturas invisíveis de poder, linguagem e desejo. Em “Bugonia”, ele transforma essa obsessão em uma parábola sobre a incomunicabilidade e a crença, retomando o humor ácido e o desconforto contínuo como ferramentas para revelar a fragilidade das nossas convicções.
O filme apresenta três perspectivas: a de Teddy, a de Michelle e a do público, que se diverte justamente pelo choque entre seu próprio repertório e os temas abordados na produção. As duas primeiras são mundos que coexistem, mas que jamais se tocam.
Teddy é interpretado por Jesse Plemons como um homem perdido entre teorias da conspiração e desesperança social; ele genuinamente acredita ser um herói em seu próprio arco narrativo, algo que o diretor exalta na trilha sonora do personagem.
Já Michelle, interpretada por Emma Stone, é uma empresária aprisionada na lógica corporativa que transforma tudo em produtividade e controle. É algo tão absurdo, mas ao mesmo tempo tão preso ao clichê da produtividade exploratória, sustentada no trabalho alheio, que a personagem acaba revelando uma espécie de autocrítica involuntária de si mesma. São dois planetas distantes orbitando o mesmo vazio, incapazes de compreender o outro.
As abelhas são posicionadas para dar coesão ao enredo principal, evocadas já na introdução e reafirmadas como metáfora central da narrativa. Elas refletem um sistema fechado, vivendo em colmeias que são, ao mesmo tempo, refúgio e prisão, microcosmos autossuficientes sustentados pela obediência a uma única figura de poder. A abelha-rainha age como o limite da realidade, a fronteira simbólica que separa o caos da ordem.
É em torno dela que tudo ganha forma e sentido, mas também onde a ilusão de estabilidade se consolida. Sua presença impõe uma lógica inquestionável, fazendo com que o coletivo se submeta à vontade de um centro que nunca se vê por completo. O filme transforma a imagem da colmeia em um espelho da sociedade, onde a busca por segurança e pertencimento revela, paradoxalmente, o desejo inconsciente de permanecer sob controle.
Assim também vivem os personagens de Lanthimos: presos dentro de suas próprias estruturas simbólicas, repetindo comportamentos, linguagens e crenças que os impedem de enxergar o exterior. Michelle é cega pela cultura empresarial que naturaliza a exploração, e Teddy é cego pelas teorias que fabrica para suportar a precariedade de sua existência. Ambos acreditam estar libertos, mas vivem confinados em colmeias mentais.
A partir dessa metáfora, é possível ler o filme pela ótica da teoria ator-rede de Bruno Latour, que propõe que o mundo não é feito de uma única realidade, mas de múltiplas redes que produzem verdades diferentes. Em “Bugonia”, cada personagem habita uma rede isolada, onde a comunicação se torna ruído e o significado se dissolve. A linguagem, em vez de aproximar, apenas reforça o abismo entre eles.
É nesse ruído que Lanthimos desenvolve seu humor, que transita facilmente entre o situacional e o do conflito verbal. O riso nasce do desencontro, da tentativa de diálogo entre mundos que já não compartilham o mesmo vocabulário. A dúvida que move o filme, se Michelle é ou não uma alienígena, perde importância à medida que o enredo avança para o desfecho cômico.
O que Lanthimos sugere é que todos são alienígenas, estrangeiros dentro de suas próprias realidades, incapazes de reconhecer a humanidade do outro, e isso atravessa a tela como uma verdade extremamente bem argumentada, com fatos e exemplos óbvios do nosso cotidiano.
Ao desmontar a estrutura narrativa da ficção científica e substituí-la por um estudo social sobre alienação, “Bugonia” reafirma o estilo do diretor: ele usa o absurdo não para distanciar, mas para aproximar o público daquilo que preferimos não ver: a mecanização das relações, o isolamento entre classes e a falência do diálogo. No fim, pouco importa quem é o verdadeiro alienígena.
O riso, em Lanthimos, é apenas o disfarce de uma constatação amarga: a de que vivemos em colmeias cada vez menores, acreditando que o barulho dentro delas ainda é o som do mundo.