O segundo turno eleitoral na Bolívia e a encruzilhada latino-americana
Pela primeira vez, a Bolívia viverá um segundo turno eleitoral no próximo domingo, 19 de outubro, no qual se enfrentarão duas facções conservadoras. Esse processo ocorre após a derrota e o virtual colapso do Movimento ao Socialismo (MAS), que governou o país por duas décadas.
A América Latina encontra-se em um momento crítico. As últimas décadas do século XXI testemunharam um florescimento constitucional sem precedentes na região, particularmente no Equador (2008) e na Bolívia (2009). Esses processos não apenas modernizaram os marcos legais, mas propuseram uma visão radicalmente nova do Estado, de sua relação com a sociedade e com a natureza. No entanto, uma crescente onda conservadora, impulsionada por poderosos interesses econômicos e pela reconfiguração geopolítica global, ameaça desmantelar esses avanços, com profundas consequências para a região e o mundo.
Não se pode ignorar que fatores como corrupção, má gestão executiva e clientelismo, em maior ou menor grau, distorceram esses processos. O caudilhismo na tomada de decisões e o manejo inadequado dos recursos públicos enfraqueceram o exercício legítimo do poder.
Um legado constitucional sob cerco
As constituições do Equador e da Bolívia destacaram-se por três pilares fundamentais que as tornaram referências de um “novo constitucionalismo”:
- Plurinacionalidade: O reconhecimento de múltiplas nações e povos indígenas e afrodescendentes dentro de um mesmo Estado, concedendo-lhes direitos coletivos, autonomia e respeito às suas cosmovisões. Essa abordagem respondeu a séculos de monoculturalismo e exclusão, buscando construir Estados mais inclusivos e representativos de sua diversidade.
- Direitos da natureza: O Equador foi pioneiro mundial ao consagrar em sua Constituição os direitos da Pachamama (Mãe Terra) de existir, se manter e regenerar seus ciclos vitais. A Bolívia, por sua vez, adotou a Lei dos Direitos da Mãe Terra com um espírito semelhante. Essa visão ecocêntrica desafiou o tradicional enfoque antropocêntrico, elevando a proteção ambiental a um imperativo ético e legal.
- Controle soberano dos recursos naturais: Ambas as constituições reafirmaram a propriedade inalienável do Estado sobre recursos estratégicos (hidrocarbonetos, mineração, água), buscando que sua exploração beneficie a população por meio de mecanismos de redistribuição e priorizando o interesse público sobre o privado.
Esses princípios não foram meras declarações; traduziram-se em marcos legais, instituições e políticas públicas que, apesar de acertos e erros em sua implementação, abriram caminhos para sociedades mais justas, equitativas e sustentáveis.
A onda conservadora e seus interesses
O contexto atual, porém, é de retrocesso. Uma forte corrente conservadora, disseminada por toda a região, considera essas conquistas constitucionais “obstáculos” ao desenvolvimento econômico. Essa visão está alinhada aos interesses de setores econômicos privilegiados localmente e, de forma crucial, às potências globais que veem a América Latina como uma reserva estratégica de recursos naturais — como lítio, terras raras, biodiversidade, água e hidrocarbonetos — essenciais para a transição energética e tecnológica global. Os marcos constitucionais que protegem a soberania e o meio ambiente são percebidos como barreiras.
Na Bolívia, o iminente segundo turno presidencial entre duas forças de direita configura um cenário preocupante. Independentemente do resultado, a disputa pelo poder pode se traduzir em políticas que revertam a plurinacionalidade, flexibilizem as regulamentações ambientais e cedam o controle dos recursos naturais a interesses privados, desmantelando a arquitetura legal construída desde 2009.
No Equador, o panorama é igualmente alarmante. O governo do presidente Daniel Noboa manifestou a intenção de convocar uma assembleia constituinte “reformista”. Na América Latina, o termo “reforma” nesses contextos frequentemente precedeu a supressão ou enfraquecimento de direitos e garantias. Já se observam retrocessos em direitos econômicos e sociais, o que prenuncia uma agenda que pode desmantelar os direitos da natureza e enfraquecer a plurinacionalidade.
As consequências de um possível retrocesso
Se esses processos constitucionais forem revertidos ou desvirtuados, as consequências serão graves e multifacetadas:
- Perda de um referencial global: A América Latina deixará de ser um laboratório de ideias e práticas constitucionais inovadoras, enviando uma mensagem desanimadora ao mundo sobre a viabilidade de modelos alternativos de desenvolvimento e convivência.
- Erosão dos direitos indígenas e afrodescendentes: A plurinacionalidade, um marco no reconhecimento da diversidade, será gravemente afetada, implicando a perda de autonomia, o enfraquecimento da identidade cultural e maior vulnerabilidade territorial e social para povos que enfrentaram séculos de opressão.
- Catástrofe ambiental acelerada: A negação dos direitos da natureza abrirá as portas para uma exploração de recursos mais agressiva e menos regulada, agravando o desmatamento, a poluição e a perda de biodiversidade em regiões vitais como a Amazônia, com impactos diretos nas mudanças climáticas e na qualidade de vida das comunidades.
- Aumento da desigualdade e da conflitividade social: A renúncia ao controle estatal dos recursos naturais e à redistribuição de seus benefícios concentrará ainda mais a riqueza em poucas mãos, aprofundando as desigualdades sociais e gerando instabilidade.
- Um mau precedente para a região: Países vizinhos, como o Brasil, que enfrentam desafios semelhantes na proteção da Amazônia e dos direitos indígenas, podem ver nesses retrocessos um incentivo para enfraquecer suas próprias legislações, perpetuando um modelo extrativista insustentável.
Defender o futuro
A próxima COP 30, a ser realizada em Belém do Pará, no coração da Amazônia, destaca a urgência da visão expressa em Defender o Futuro. Essa visão sublinha a necessidade de uma vigilância ativa e de uma compreensão profunda do que está em jogo. Para os povos amazônicos e as nações latino-americanas, essa cúpula não é um mero debate jurídico, mas a defesa de um modelo de sociedade mais justo, equitativo e respeitoso com a vida em todas as suas formas. As expectativas centram-se na adoção de medidas concretas para conter a destruição ambiental e garantir a autonomia regional, enfrentando com firmeza os movimentos conservadores que ameaçam reverter esses avanços.
O sucesso da COP 30 representa uma oportunidade crucial para evitar uma perda irreparável na capacidade da América Latina de forjar um futuro autônomo e sustentável. É um chamado à ação que ressoa profundamente em um continente tão vulnerável quanto rico em biodiversidade. Nesse contexto, as gestões estatais progressistas que ainda resistem na região têm um papel fundamental. Essas administrações, em conjunto com a cidadania, acadêmicos, movimentos sociais e atores políticos, devem impulsionar um modelo de desenvolvimento que permita habitar o século XXI com dignidade e sustentabilidade, promovendo inovações constitucionais e marcos legais que protejam os direitos ambientais e sociais e defendam os territórios ancestrais.
A COP 30 oferece uma plataforma estratégica para que esses governos, em aliança com os povos originários e a sociedade civil, demonstrem que é possível consolidar um caminho rumo à justiça climática, fortalecendo a autonomia latino-americana e assegurando que o destino dessas inovações constitucionais não seja um retrocesso, mas um avanço concreto em direção a um futuro equitativo e sustentável para a região e o planeta.