
O Círio de Nazaré e a cidade que se faz palco da fé
No Círio, a arquitetura vira testemunha da fé. Belém se refaz entre promessas, patrimônios e procissões.
por Anna-Beatriz Aflalo
O Círio de Nazaré, em todas as suas procissões oficiais e celebrações não oficiais, é uma festa popular de rua e, como tal, está intrinsecamente conectada ao espaço público construído, tendo como cenário edificações — históricas ou não — que compõem a cidade.
O “Natal dos Paraenses” tem como testemunha mais de 2,7 milhões de pessoas, entre devotos e curiosos. Além delas, asfalto, paralelepípedo, concreto, pedra, cal, taipa, madeira, ferro e toda a sorte de materiais que construíram Belém ao longo dos seus mais de 400 anos de ocupação portuguesa também registram a passagem de Maria no tempo, desde 1793, quando ocorreu o primeiro Círio de Nazaré.
Da arquitetura colonial militar da Cidade Velha, passando pelos edifícios ecléticos da Campina, percorrendo o corredor modernista do Reduto, na Avenida Presidente Vargas, e chegando aos edifícios contemporâneos em Nazaré, cada janela assiste a Nazinha passar — com vista direta ao rosto de Maria e seu Filho, ou sobre a copa das árvores.

Em 2004, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, de Belém do Pará, foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no Livro de Celebrações. Em 2013, recebeu o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade, concedido pela UNESCO.
De forma geral, tal reconhecimento chancela a importância do Círio como expressão de identidade, memória coletiva, criatividade e pertencimento, tornando-o referência quando se fala em cultura paraense. A festa é um marco de vivência, experiência, união e simbologia para quem a celebra.
Assim como o Círio, o reconhecimento da arquitetura de Belém como Patrimônio Histórico Material também é expressivo, já que se trata de uma capital com mais de quatro séculos de ocupação e um dos centros históricos mais preservados do país.
Tal qual as celebrações reconhecidas pelo IPHAN, os bens edificados na “Cidade das Mangueiras” são patrimônios culturais que, através de paredes, janelas e telhados, contam a história de um povo e contribuem para a formação da identidade local, da memória coletiva e dos sentimentos de reconhecimento e pertencimento dos belenenses com seu lugar.
Sejam palacetes ecléticos ou construções vernaculares ribeirinhas, as edificações constituem plano de fundo imprescindível para a passagem da Virgem de Nazaré e servem de abrigo para a visita da imagem peregrina em lares, empresas e órgãos públicos durante a festividade.

Alguns desses edifícios são pontos de referência — não apenas para a orientação de quem vive em Belém, mas também durante o Círio.
“Vou assistir à saída da Sé”, “Te encontro ao lado da Basílica”, “Já chegou no Gentil?”, “A corda está subindo a curva da CDP”, “Ela está passando o Manuel Pinto”… Todas expressões muito comuns entre os paraenses que vivem o Círio — e rapidamente adotadas por quem não é paraense, mas participa da festa pela primeira vez.

As cidades da Região Metropolitana de Belém, em outubro, se tornam sujeitos de fé. Enquanto organismo vivo, a cidade se reorganiza, se move e pulsa em função da fé coletiva. O espaço parece respirar em outro tempo, e os lugares que antes tinham um significado individual ganham novos sentidos, agora coletivos.
Durante o Círio, desenham-se caminhos temporários, criam-se paisagens efêmeras, reativam-se centralidades, acolhendo a fé e a cultura de um povo que vive a cidade e faz do rés do chão — de asfalto, paralelepípedo ou barro — o seu principal caminho.
No segundo domingo de outubro, a cidade é de Nazinha, com todas as suas ilhas e porção continental. Todos os olhares se voltam e todas as janelas se abrem para vê-La passar em seu palco de asfalto ou de água doce — no rio, que por aqui também é rua — sob o efeito de luzes e chuvas de papel picado.
Viva Nossa Senhora de Nazaré! Viva Belém!