
O sentido de tornar Spike Lee um dos nossos
Título honorário a Spike Lee reafirma o papel do Rio e da negritude no cinema brasileiro.
Não sem controvérsias, o Rio de Janeiro ostenta o título de primeira cidade filmada da América Latina. Faço questão de lembrar a controvérsia porque, ao concedermos o título de cidadão honorário a Spike Lee, é importante refletir sobre o sentido simbólico dessa relação entre cidade e cinema. Em 19 de junho de 1898, o ítalo-brasileiro Afonso Segreto teria registrado a Vista da Baía de Guanabara como um simples teste de câmera — um gesto inaugural que, à sua maneira, antecipou a potência cultural que o audiovisual teria para o país.
Desde então, o cinema brasileiro trilhou uma saga marcada por inventividade, resistência e enfrentamento às forças de subjugação global. Da Cinédia e Atlântida ao Cinema Novo, do cinema marginal ao desmonte da Embrafilme, até as políticas de retomada com as leis de incentivo, o Fundo Setorial do Audiovisual e o redesenho da Ancine nos anos 2000 — nossa história é a de quem insiste em filmar o Brasil a partir do Brasil.
O Rio, nesse contexto, é muito mais que um cenário: é o berço simbólico, político e civilizacional do audiovisual nacional. Aqui amadureceu-se a compreensão de que o cinema é cultura, economia e soberania. Provas disso são a atuação da RioFilme, a criação da Film Commission carioca e a aprovação de leis estaduais fundamentais, como a que reconhece o Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul como patrimônio imaterial (Lei nº 1.027/2025), o Estatuto do Audiovisual Fluminense (PL 4.490/2024) e o Programa de Incentivo à Atração de Produções (PL 35/2024) — todos de minha autoria, elaborados com amplo diálogo com trabalhadoras e trabalhadores do setor, por meio da Frente Parlamentar em Defesa do Audiovisual Fluminense.
Conceder a Spike Lee o título de cidadão honorário do Rio de Janeiro, portanto, é mais do que um gesto simbólico: é uma afirmação de projeto. Mostra que o Rio quer ser ponta de lança de uma política pública sólida para o audiovisual, capaz de gerar empregos, atrair investimentos e projetar nossas narrativas para o mundo. E, nesse processo, reafirmar que o cinema brasileiro só será plenamente soberano quando for também negro, popular e democrático. É entender, ainda, que a busca por mais investimentos — sejam eles públicos ou privados, nacionais ou estrangeiros — passa por afirmar nossas cidades e seus festivais como vitrines obrigatórias para os maiores realizadores do mundo, e que essa estratégia de internacionalização representa um passo significativo em direção à conquista de autonomia, geração de empregos e oportunidades diretas e correlatas para todos os envolvidos na cadeia do audiovisual.
Spike Lee encarna esse horizonte. Não apenas pelo vínculo afetivo com o Brasil e com o Rio — cidade onde dirigiu o icônico clipe de They Don’t Care About Us —, mas porque construiu uma obra que revolucionou a forma de filmar a negritude e a desigualdade. Ao fazer do cinema um instrumento de consciência e libertação, Spike Lee demonstra que filmar é também um ato político.
Ao homenageá-lo, reafirmamos que o futuro do audiovisual brasileiro depende da reparação de injustiças históricas e do reconhecimento do papel central do povo preto, diverso e criativo, que é a alma deste Rio. Spike Lee é, assim, mais que cidadão honorário: é parceiro, ponte e inspiração para o cinema que queremos — um cinema que projete o Brasil real e reafirme nossa força diante do mundo.