Poeta de marca maior, o sambista Nelson Rufino chega aos 83 anos cheio de vontade e projetos. Continua fazendo shows pelo país afora e em sua terra natal, Salvador (BA), onde mora até hoje. Embora consagrado pela autoria de clássicos cantados por grandes intérpretes brasileiros, mais de 50 anos depois de se dedicar ao samba, segue sem muito holofote da mídia, mas compondo sem parar. Muitas de suas músicas foram eternizadas na música popular brasileira, como Verdade, na voz de Zeca Pagodinho, e Todo Menino é um Rei, consagrada por Roberto Ribeiro, entre tantas outras.

Caneteiro de mão cheia — como se diz entre os sambistas sobre os bons compositores —, Rufino tem feito novas parcerias e diz ter muita coisa antiga gravada ainda não lançada. É um dos expoentes do samba baiano, ao lado de nomes como Ederaldo Gentil e Batatinha. Na juventude, durante uma passagem pelo Rio de Janeiro, tornou-se parceiro de grandes bambas como Zé Luiz do Império, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Jorge Aragão e Toninho Geraes. É muito querido no meio, graças ao seu alto astral e simpatia, que lembram o estilo baiano de Dorival Caymmi.

Na entrevista, realizada antes do show no Cacique de Ramos — tradicional casa de samba do subúrbio carioca —, ele falou sobre sua trajetória, a história do samba no Brasil, suas parcerias e destacou a renovação geracional em Salvador. Falou também sobre suas melodias, com levada muito própria, e sobre o poder da criação, que, segundo ele, vem de algo divino.

Como é que o samba entrou na tua vida? Você veio para o Rio jogar futebol, mas como se deu esse encontro com a música?

Nem sei, é uma grande pergunta… [risos] Acho que o samba entrou na minha vida porque o meu pai, o Seu Genésio, tinha um bloco de samba chamado Turma de Mangueira. Sou o caçula, o décimo quinto, e não deu para herdar muita coisa. Naquela época, a Turma ficava escutando as novidades do Rio de Janeiro. Assim, o samba foi entrando na minha vida — não inconscientemente nem conscientemente: ele foi entrando de mansinho. Tínhamos um grupo de serenata, naquela época podia-se cantar de madrugada, e sempre encerrávamos com aquela música do Ary Barroso, que o Monarco também gravou, Eu Nasci no Morro. Talvez aí tenha sido a primeira injeção. Eu era o cantor no grupo, até em castelhano eu cantava bolero [risos]. Ainda brincávamos com alguma coisa de Riachão, mas ainda não era samba.

E por que não deu certo o futebol? Você tentou em quais clubes?

Um grande amigo meu de Salvador veio jogar no Fluminense e me levou. Foi lá que eu vi o Carlos Roberto Torres, no juvenil, isso era em 1962. Naquela época, o juvenil era bem pago, mas na minha posição já tinham dois jogadores e em outra mais dois, então ficou difícil. Tive que trabalhar para não passar fome, embora tivesse a guarida de um irmão. Mas a saudade da minha mãe doeu muito e até me fez compor uma canção, oficialmente minha primeira música. Na época das cartas, disse que o povo aqui tinha gostado da música para mamãe e começaram a fofocar na Bahia que o Nelsinho agora era compositor [risos]. Quando voltei a Salvador, um irmão disse que tinha uma encomenda para mim: “Já falei lá no Tororó que você agora é compositor”. Aos 22 anos, fiz um samba-enredo para o bloco, que dois anos depois virou escola de samba e fui campeão do Carnaval. A partir daí, não parei mais. Mas, às vezes, me toco — como agora — para ver se sou eu mesmo que estou aqui, porque fiz 83 anos agora. Um amigo carioca disse um dia num bar: “Véio, sua caneta não quebra não?!” O bom da minha última música para celebrar a vida, Canto, é que não amarrei a chuteira. Foi uma menina lá da Bahia, Juliana Ribeiro, que me pediu para fazê-la.

Foi nessa sua passagem quando veio jogar futebol que começou a fazer parcerias no Rio e conhecer a galera?

Não, ninguém nem sabia. Naquela época, conheci o Niltinho Tristeza, que casou com uma baiana amiga minha. Conseguimos compor um bolero, muito cantado em nossas serenatas. Eu era cantador de bolero. Mas, certamente, a veia do meu pai, de Seu Genésio, pelo bloco de samba, caiu esparramada em minha vida.

Essa coisa da origem do samba fala muito do Rio de Janeiro, mas a Bahia não é tão forte midiaticamente. Como é que você vê o samba baiano?

Tenho conversado muito comigo sobre isso. O samba na Bahia, graças a Deus, está ficando forte depois de muitas agruras. Cronologicamente, o samba chegou à Bahia. Mas a escravidão no Brasil, com o Rio de Janeiro como capital, chegou aqui também. Tenho uma música nova que fala sobre isso. O samba é resultante dos cânticos, das dores, dos baticuns dos terreiros, e o Rio absorveu isso também. Numa entrevista em 1976, brinquei dizendo que jamais o Rio de Janeiro faria samba de roda, assim como o baiano nunca faria partido-alto. Mas o Rio não ficou somente no partido-alto. São Paulo chegou depois e também se fortaleceu no samba.

O samba não é tão forte em Salvador porque o carioca fez a vitrine. Embora tivéssemos naquela época Batatinha, Riachão, Canela e Walmir Lima, que hoje está com 94 anos, vieram depois Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Roque Ferreira e outros que seguraram a viola. Depois veio o axé music, que surgiu com muita força e inibiu um pouco o samba. Em 1992, quando lancei meu primeiro LP solo, Viva Meu Povo, o É o Tchan começou a explodir, e me perguntei: Rufino, você vai para onde? Não sei fazer o pagode baiano. Aí Deus me deu a música Verdade. Respirei e continuei fazendo o mesmo samba que faço até hoje. Felizmente, o samba está ficando forte em Salvador, com renovação geracional.

Forte de renovação geracional? Tem uma galera nova vindo aí com qualidade?

Uma galera nova muito boa. O samba está enchendo casas em Salvador. Recebemos visitas, de vez em quando, do Terreiro de Crioulo, Samba de Caboclo, entre outros. O nosso samba conseguiu preservar a tradição, especialmente o samba de roda de Santo Amaro, considerado a maior semente do samba do Brasil. Ele continua vivo: a chula, o cântico do Recôncavo, ainda existem e fortalecem o samba brasileiro.

Conversei com alguns músicos, inclusive parceiros seus, e todos falam de uma levada, uma melodia muito característica sua. Consegue explicar um pouco?

Me batizaram aqui no Rio, só tenho a agradecer. Por questões de descrição, não quero dar nomes nem revelar atos específicos. O samba de Nelson Rufino foi se caracterizando com a minha inspiração, que é divina. É um lampejo, só vem. Estava no bar e um menino largou um mote. Desenvolvi aquilo, e virou música. Sou o rei dos motes e me apego aos que aparecem na minha vida.

Sou o rei da madrugada também. As ideias vêm à noite, mas nem todos os dias. Uma vez, na festa da minha nora, um homem chegou brigando com o violonista: “Não é assim não, rapaz”. Acordei assustado, mas vi que dava pé. Meu celular é antigo, mas dá para escrever muita coisa nele. A criação flui do nada. Quando alguém me pede para fazer um samba, digo que só faço se a inspiração vier.

Tem tempo próprio, que nem na tua música Tempo Ê?

Graças a Deus, ela vem. Tempo Ê completa 50 anos no ano que vem. Meu primeiro parceiro carioca foi Zé Luís do Império. Nos velhos tempos, ele ia para Salvador e eu vinha para o Rio. Nos conhecemos no festival de Jorge Garrido. Ele me chamou de curumba e disse: “Estou com uma melodia que está me enchendo o saco”. Eu tinha um tema e completei. Usei um cântico da Umbanda, o Orixá do Tempo, e o transformei. Tempo me disse que só com o tempo a gente chega lá [cantou].

E Todo Menino é um Rei explodiu na voz de Roberto Ribeiro, também parceria com Zé Luís.

Foi a grande venda de Roberto Ribeiro. Sem desmerecer ninguém, Está Faltando Alguma Coisa em Mim foi outro grande sucesso, ganhou platina. Sou parceiro de grandes irmãos do Rio: Martinho da Vila, Jorge Aragão, Toninho Geraes, Dudu Nobre. Com Jorge Aragão fiz Colcha de Algodão, com Martinho Nas Águas de Amaralina. Com Toninho, ganhamos o prêmio da Música Brasileira com Uma Prova de Amor. Sou só agradecimento. Quando era menino, me ensinaram que o criador do universo não é humano, mas Deus. Ele não me decepcionou até agora, então não vou mudar de time.

Na sua composição, muitas vezes remete à ancestralidade, religião, etc. Qual a importância disso e da negritude?

Viva meu povo negro:
Cada lágrima caída em todo negro que viveu
A escravidão sofrida fez mais forte o sonho seu
De um dia não distante ver seu povo livre sim
Cativeiro cruciante tinha que chegar ao fim
Viva meu povo
Viva meu povo negro eêê [cantou].

O racismo é complicado. Tem negro que é racista sem perceber. Nem todo branco é racista. A escravidão deixou rastros que ainda perseguem o negro. Mas a situação melhorou bastante. A liberdade do negro está na cultura, no estudo. Quanto mais estudamos, mais amenizamos a rejeição à nossa cor.

No seu aniversário mês passado você fez mais um show de arrecadação para doação. Você se preocupa com a questão social, né?

Nosso país ainda carece de ajuda. Conseguimos arrecadar 800 kg, sendo 400 kg para crianças com câncer. O Brasil ainda precisa muito de apoio a determinados grupos. Em Salvador, por exemplo, temos o trabalho lindo da Irmã Dulce, que retribui o que recebe, numa troca maravilhosa.

O Nelson Sargento falava: o samba agoniza, mas não morre. Como você vê a renovação geracional?

Em Salvador, em três anos teremos uma renovação de novos compositores. Aqui no Rio, os cariocas analisam a própria cena. Hoje, os grupos de samba de Salvador já enchem casas, o que antigamente não acontecia. Temos o samba da Feira São Joaquim, Comando de Gávea, Banjo Novo, Ícaro… e outros movimentos que fortalecem a tradição.

E os projetos, o que você tem em vista para a frente? Está trabalhando algum material?

Olha, garoto, o segredo fortalece [risos]. Como dizia Luther King, I have a dream. Ainda tenho sons guardados, fitas não gravadas…

Você tem vindo ao Rio de vez em quando?

Além do Rio me abraçar como compositor, dois filhos meus moram aqui, e tenho dois netos cariocas. Mas falo das parcerias de Salvador, como Avelino Borges, Edil Pacheco… Faz 50 anos que Alcione gravou Aruande, de Ederaldo Gentil. Valmir Lima, temos muitas músicas juntos, incluindo o samba-enredo da escola Jorge Amado. Brinco com ele: “Toda entrevista sou obrigado a falar de você, seu maluco”. Ele casou com minha irmã e tivemos convivência muito forte, até hoje.

Se tem algo bonito no compositor, é reverenciar o outro. Tenho paixão por músicas de outros autores: O Canto da Sereia [cantou], do Toninho Geraes; Paulinho Resende, um caneteiro incrível; Jorge Aragão, melhor parceiro do mundo, igual a Paulo César Pinheiro.

Gostei quando você falou da importância da cultura em nosso país, que é tão rico e diverso…

Não existe país mais rico em cultura que o Brasil. Uma vez fiz show em Recife e fiquei em Olinda; entrou o Maracatu. No Maranhão, a Festa dos Tambores… A Serrinha contribuiu muito, porque o jongo virou samba também. Tem o jongo raiz, mas tem a levada daqui. Dona Ivone Lara era louca pelo jongo. O repentismo do samba de partido-alto é paralelo aos violeiros repentistas, só que cai no samba, e por aí vai…