Acessibilidade Atitudinal x Anticapacitismo: entre a mudança de postura e a transformação estrutural
Do ajuste de atitudes à mudança estrutural: o anticapacitismo como caminho para a equidade.
por Thamyle Vieira
Durante muito tempo, o conceito de acessibilidade atitudinal foi um importante marco na luta por uma sociedade menos excludente. Criado pelo pesquisador Romeu Sassaki — um homem sem deficiência que contribuiu significativamente para os debates sobre inclusão —, esse conceito nos ajudou a nomear e enfrentar posturas discriminatórias e barreiras comportamentais. Em seu tempo, ofereceu reflexões que nos permitiram acessar determinados espaços sociais, ainda que sob a lógica da igualdade de condições. É preciso reconhecer que, embora a acessibilidade atitudinal tenha tido seu papel histórico, ela já não dá conta das complexidades e urgências do nosso tempo.
A acessibilidade atitudinal trata da mudança de postura individual, do esforço pessoal em não reproduzir estigmas, preconceitos ou práticas excludentes. Mas ela se baseia na ideia de que pessoas sem deficiência precisam “permitir”, “acolher” ou “ser empáticas” com pessoas com deficiência — o que, na prática, reafirma uma hierarquia entre corpos, como se nossas existências dependessem da boa vontade de outros. Ainda que de forma inconsciente, esse pensamento reforça a ideia de que há um “centro” normativo, a partir do qual nós, corpos desviantes desse padrão, precisamos ser aceitos ou tolerados.
Por outro lado, o anticapacitismo é uma perspectiva muito mais ampla e transformadora. Ele não se limita a uma mudança de atitude individual, mas propõe uma revisão estrutural e cultural profunda, questionando as bases capacitistas que sustentam nossa sociedade. O termo “capacitismo”, como bem nos ensinou a pesquisadora Anair Guedes — que o introduziu no Brasil —, nomeia a lógica de mundo que define quem é considerado válido, produtivo e digno de estar em certos espaços, e sob quais condições. Lutar contra isso exige mais do que empatia — exige mudanças nas políticas, nas práticas institucionais e na própria arquitetura do pensamento social.
O protagonismo que exercemos hoje não nos foi concedido por pessoas iluminadas ou sensibilizadas. Foi conquistado com muita luta, articulação política, resistência, produção de conhecimento, enfrentamento das instituições e resiliência cotidiana. E é importante dizer: resiliência não é aceitar a opressão com paciência, mas resistir a ela com estratégia, coragem e continuidade. É um ato de afirmação diante de um sistema que tenta nos apagar ou nos reduzir à exceção. Nós, pessoas com deficiência, não apenas queremos acessar e transformar os espaços — temos o direito de fazê-lo. Queremos deixar de ser vistos como “convidados” para sermos reconhecidos como sujeitos históricos, políticos e culturais.
Na mesma direção da crítica à acessibilidade atitudinal, é importante ressaltar que a própria noção de “inclusão” carrega essa lógica de centralidade normativa e concessão de espaço — como se houvesse um “dentro” a ser acessado com a autorização de quem já está lá. Mas essa é uma conversa que também precisa ser feita com profundidade — e que deixo para um próximo momento.
Portanto, é hora de avançar. Reconhecer o que a acessibilidade atitudinal representou em seu tempo não significa se apegar a ela como suficiente. O anticapacitismo é o caminho que aponta para o futuro — um futuro em que nossas corporalidades não precisem mais ser justificadas, em que nossas vozes não sejam silenciadas nem filtradas, e em que a presença de pessoas com deficiência nos mais diversos espaços seja orgânica e inegociável. É disso que se trata a verdadeira transformação. E essa transformação exige que deixemos de falar em igualdade formal para afirmar, com nitidez e coragem, o nosso direito à equidade.
*Thamyle Vieira é pedagoga, consultora em acessibilidade cultural e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. Mulher cega, é mestranda em Economia e Política da Cultura e Indústrias Criativas (UFRGS/Itaú Cultural) e coordena a Célula de Acessibilidade da Secretaria da Cultura do Ceará (SECULT-CE). Tem ampla experiência na área, com atuação em eventos como o Festival Música na Ibiapaba, o Seminário Cultura do Acesso e a Feira da Música-CE, além da coordenação da implantação da Política de Acessibilidade na Rede de Equipamentos da SECULT-CE. Integra o Grupo de Trabalho em Acessibilidade Cultural do Ceará e o GT de Acessibilidade da Funarte.