
SOM indica: As ruas entendem Clara Lima há mais de 10 anos
Cria das rodas de rima de Minas Gerais, a rapper retorna ao boombap em As Ruas Sabem, disco que revisita suas origens e sua trajetória
por Davi Maia
Dois anos depois do lançamento de seu último trabalho, Clara Lima apresenta As Ruas Sabem, álbum que se consolida como um dos destaques do hip-hop nacional em 2025. Em pouco mais de 30 minutos distribuídos em 12 faixas, a rapper mergulha em dores, revolta e determinação, sobre bases cruas do boombap, dividindo o flow com nomes como Sant, Dalsin e Mac Júlia.
As novas reflexões instigam a volta às suas origens. Criada nas rodas de rima de Belo Horizonte, Clara cresceu artisticamente sob o Viaduto de Santa Teresa, espaço icônico de resistência e encontro para MCs e beatmakers da cidade. “Eu comecei esse rolê muito nova, 14 anos, já estava dando meus primeiros passos ali nas batalhas. O viaduto de Santa Teresa foi esse berço pra mim, de ocupação, resistência, de abraçar as lutas não só do rap”, conta.
Aos 16 anos, Clara foi a primeira mulher finalista do Duelo de MCs Nacional, competindo entre oito participantes e ao lado de nomes que hoje são referência, como Orochi. Essa vivência, intensa e formativa, moldou seu olhar para a música e para as relações de poder dentro da cena: “Cresci com a galera do duelo, da DV Tribo… muito aprendizado entre erros e acertos, construindo algo grandioso”, afirma.
Depois de experiências que atravessaram o trap e o funk, incluindo colaborações com Duquesa e Mc Luanna, Clara escolheu revisitar o boombap em As Ruas Sabem – roupagem crua das bases de sample soam ainda mais familiar num clima que revive as suas épocas de batalha. Para isso, reuniu 12 produtores, incluindo Coyote Beatz, BEATDOMK, Carla Arakaki, TEAGA, Eloy Polemico, DJ Cost, Gioprod, MadreBeatz, Pizzol, SARTOR, Marabá e VIETNÃ. Segundo a rapper, a escolha e o convite aos parceiros não foram apenas estéticos, mas também afetivos e de admiração.
“O Coyote, por exemplo, já tem mais de dez anos de troca comigo” – disse, lembrando os áureos tempos da DV Tribo, coletivo mineiro que reuniu grandes nomes da cena de rap mineira, como FBC, Djonga e Hot & Oreia. “Ele trouxe a essência das minhas origens”, completou. Durante todo o processo de produção, Clara se mostrou disposta a complementar o processo criativo dos produtores através de longas sessões de estúdio e de envio prévio de bases (rascunhos) que deram o tom de unidade de um disco bem amarrado no ritmo.
Depois do lançamento especial do álbum em julho, com seu show sob o icônico Viaduto Santa Tereza, em BH, a artista segue em turnê com seu novo disco. No próximo dia 10, sexta-feira, a rapper tem apresentação confirmada no Sesc Pompéia, em São Paulo. O show também tem participações confirmadas de Mac Julia, James Ventura e Smile. Os ingressos estão disponíveis aqui.
Além do repertório musical, As Ruas Sabem também reflete a necessidade de autonomia e expressão: “O álbum nasceu da revolta que eu vinha sentindo nos últimos anos, com produtoras, empresários… Eu precisava tomar o que é meu de volta, ter o poder das minhas paradas”, explica Clara. Esse sentimento se materializa, inclusive, na participação de Paulo Galo, ativista e figura-chave do cenário de São Paulo, que adiciona voz e perspectiva à obra, na faixa “Tudo Ou Nada”.
Clara Lima decidiu pelo rompimento com o casting de artistas da gravadora/produtora Ceia Ent., de Don Cesão e Nicole Balestro. A gravadora encerrou suas atividades em 2023. Polêmicas relacionadas à falta de transparência e má gestão de carreiras de artistas como Djonga, Tashe e Tracie e Kyan surgiram à tona neste ano novamente, com novas exposições por parte da empresária Nicole Balestro e discussões com artistas que foram representados pelo selo à época.
Desde sua saída da Ceia, Clara segue sua caminhada como uma artista independente e, apesar do apoio e fortes laços de amizade de nomes como FBC e Djonga desde seu início, Clara lembra que a representatividade feminina na sua cena de hip-hop é limitada: “A dificuldade maior é ter que ter a validação dos caras. Eu tento sempre fazer minha caminhada por mim e, se der, somar com os irmãos”, reflete. Essa postura é evidente na curadoria do álbum, que evita colaborações óbvias e busca reconstruir o diálogo com sua própria história, com menções às épocas douradas de DV Tribo, mas focando em sua individualidade: sem usar colaborações de muleta para um padrão de consumo machista.
As Ruas Sabem é uma narrativa da construção de Clara Lima como artista: da adolescência em BH ao estabelecimento em São Paulo, dos primeiros passos nas batalhas à autonomia criativa em seu primeiro álbum independente. Aos 26 anos, a rapper sintetiza sua trajetória: “O rap me deu respeito, valores e a chance de sobreviver longe de casa. Mas o mais precioso é isso: respeito. Eu levo na risca para jamais perder isso”.