Alimentação escolar saudável: um investimento no nosso futuro

Poucas políticas têm um impacto tão amplo e transformador quanto a alimentação escolar.

Por José Graziano da Silva

Dois relatórios importantes divulgados nas últimas semanas lançam luz sobre os desafios e as oportunidades para garantir que as crianças cresçam saudáveis, bem nutridas e preparadas para um futuro melhor. O do UNICEF, Alimentando o Lucro: Como os Ambientes Alimentares Estão Falhando com as Crianças, denuncia como o marketing agressivo e a ampla disponibilidade de produtos ultraprocessados estão moldando dietas não saudáveis e impulsionando o crescimento alarmante da obesidade infantil. Já o relatório do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Estado da Alimentação Escolar no Mundo 2024, mostra a expansão dos programas de merenda escolar em todo o planeta, que hoje alcançam 466 milhões de estudantes — um aumento de 20% desde 2020.

Tomados em conjunto, os dois relatórios contam uma história poderosa. De um lado, vemos nossas crianças sitiadas por uma indústria que lucra promovendo refrigerantes açucarados, salgadinhos e fast food que comprometem sua saúde. Do outro, governos, escolas e comunidades mostram que é possível construir ambientes alimentares mais saudáveis por meio de programas de alimentação escolar que protegem o direito humano à alimentação e criam hábitos saudáveis para a vida toda.

A relação entre os dois estudos é clara. O UNICEF mostra como os ambientes alimentares não regulados estão colocando em risco a saúde infantil. O PMA, por sua vez, demonstra como políticas públicas bem desenhadas podem transformar essa realidade.

Os números da UNICEF são preocupantes. Pela primeira vez, a prevalência global de obesidade entre crianças e adolescentes superou a da desnutrição. Mais de 390 milhões de jovens entre 5 e 19 anos vivem hoje com excesso de peso. O mais alarmante é a velocidade dessa transição nos países de renda baixa e média, onde a desnutrição ainda é um desafio, mas a obesidade já se tornou a forma dominante de má nutrição.

O relatório mostra como os alimentos ultraprocessados, baratos, agressivamente promovidos e facilmente acessíveis, ocupam o lugar de alimentos frescos e nutritivos na dieta das crianças. As consequências vão além da saúde física: aumentam o risco de diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e até mesmo problemas de autoestima, ansiedade e depressão. E ainda cabe às famílias o peso financeiro das despesas médicas e o sofrimento de ver seus filhos crescerem com dificuldades de saúde que poderiam ser evitadas.

O UNICEF pede ações firmes: limitar o marketing de produtos nocivos, reformular alimentos, taxar bebidas açucaradas e, sobretudo, garantir acesso a dietas saudáveis. É um chamado para que os governos retomem seu papel central de proteger o direito das crianças à boa alimentação.

O relatório do PMA traz uma grande esperança. Apesar das crises globais, os governos ampliaram seus programas de alimentação escolar em ritmo histórico. Foram mais quase 80 milhões de crianças atendidas em apenas quatro anos, um aumento maior que toda a população do Chile por ano. O destaque vai para a África, onde a cobertura cresceu quase 60%, com avanços notáveis em países como Etiópia, Ruanda, Madagascar e Quênia.

A Coalizão para a Alimentação Escolar, lançada em 2021 na Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, consolidou-se como uma das iniciativas multilaterais mais bem-sucedidas do período pós-pandemia. Hoje, reúne 108 governos e 144 organizações parceiras, trabalhando juntas para que todas as crianças tenham acesso a refeições nutritivas até 2030.

Os relatórios destacam os amplos benefícios alcançados pelos programas de merenda escolar: melhora o aprendizado, reduz a evasão escolar, atua como a maior rede de proteção social do mundo e gera mercados estáveis para pequenos agricultores comercializarem parte de sua produção. Com isso,cria empregos, fortalece as economias locais e promove dietas mais saudáveis e sustentáveis. Os estudos mostram retornos de até nove dólares para cada dólar investido, comprovando que se trata de um dos melhores investimentos em desenvolvimento que um país pode fazer.

O Brasil é referência mundial nessa agenda. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garante refeições gratuitas a mais de 40 milhões de estudantes todos os dias e estabelece que pelo menos 30% dos alimentos sejam adquiridos da agricultura familiar. Essa inovação conecta diretamente o campo à escola, fortalecendo famílias agricultoras e garantindo alimentos frescos às crianças.

Em 2024, o Brasil reafirmou sua liderança ao sediar a II Cúpula Global de Alimentação Escolar, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura. O encontro celebrou conquistas, mas também apontou para novos compromissos: ampliar o alcance dos programas e assegurar que todas as crianças, especialmente as mais vulneráveis, tenham acesso a refeições saudáveis e sustentáveis.

É nesse ponto que a experiência brasileira se torna ainda mais relevante para o mundo. Vincular a merenda escolar à compra da agricultura familiar é uma das formas mais eficazes de “juntar a fome com a vontade de comer”. Ao mesmo tempo em que garante alimentação saudável para milhões de estudantes, promove renda e inclusão produtiva para pequenos agricultores, fortalecendo a economia local e criando laços de solidariedade entre o campo e a cidade.

Pude testemunhar pessoalmente a importância dessa estratégia enquanto Diretor Geral da FAO em diversos países da África, onde o Brasil teve a oportunidade de cooperar tecnicamente para criar programas de alimentação escolar baseados em compras da agricultura familiar. Essa integração não apenas melhora a qualidade das refeições, como também transforma os sistemas alimentares locais, gerando mercados previsíveis e sustentáveis que estimulam a diversificação agrícola e reduzem a vulnerabilidade das comunidades rurais.

Essa dimensão de integração entre escola e agricultura familiar deve ganhar centralidade na agenda internacional. É uma forma concreta de tornar os programas de alimentação escolar mais resilientes, sustentáveis e transformadores, atendendo simultaneamente a três objetivos: combater a fome, melhorar a nutrição e fortalecer a produção localA alimentação escolar saudável não é apenas uma resposta à fome em sala de aula e a dificuldade de aprendizagem que acarreta. Ela é uma ferramenta estratégica contra a avalanche de ultraprocessados, oferecendo diariamente às crianças o exemplo concreto do que significa comer bem. Ao formar hábitos saudáveis desde cedo, a merenda escolar ajuda a conter a epidemia global de obesidade infantil que enfrentamos atualmente.

A alimentação escolar saudável não é apenas uma resposta à fome em sala de aula e a dificuldade de aprendizagem que acarreta. Ela é uma ferramenta estratégica contra a avalanche de ultraprocessados, oferecendo diariamente às crianças o exemplo concreto do que significa comer bem. Ao formar hábitos saudáveis desde cedo, a merenda escolar ajuda a conter a epidemia global de obesidade infantil que enfrentamos atualmente.

Mas há muito a ser feito. Metade das crianças do ensino fundamental no mundo ainda continua sem acesso a merenda! E a desigualdade é gritante: nos países de baixa renda, a cobertura é de apenas 27%, contra 80% nos países de alta renda.

Precisamos mudar esse quadro. Não podemos permitir que os interesses comerciais prevaleçam sobre o direito à saúde. Os governos devem adotar políticas obrigatórias e abrangentes; a sociedade civil deve exigir mudanças e vigilância; e a comunidade internacional precisa garantir apoio aos países mais vulneráveis.

Poucas políticas têm um impacto tão amplo e transformador quanto a alimentação escolar. Ela salva vidas,ajuda a educação infantil e constrói sociedades mais saudáveis. Se queremos enfrentar a dupla carga da fome e da obesidade e dar às crianças um futuro justo, investir em merenda escolar saudável não é uma opção: é uma obrigação governamental!