Por Bianca Borges, presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE)

Desde o início da tramitação do processo judicial contra Jair Bolsonaro e os demais acusados pela trama que culminou no ataque às sedes dos Poderes em Brasília no 8 de janeiro – que resultou em sua condenação a 27 anos e 3 meses pela tentativa de golpe de Estado, assim como na condenação de Braga Netto, Augusto Heleno, Mauro Cid e Alexandre Ramagem, a primeira vez na história em que generais e lideranças militares foram punidos por uma tentativa de golpe, o bolsonarismo passou a erguer a bandeira da anistia. Mas não há nada de legítimo nessa reivindicação: trata-se de um subterfúgio para assegurar a impunidade dos que atentaram contra a democracia. Nada seria mais danoso ao país do que repetir erros que já marcaram tragicamente a nossa história.

É nesse mesmo espírito que surgiu a chamada PEC da Blindagem, apelidada, com razão, de PEC da Bandidagem. Trata-se de uma tentativa descarada de criar um salvo-conduto constitucional para políticos e autoridades que atentam contra a democracia. Se a anistia pretende apagar crimes já julgados, a PEC busca garantir, para o futuro, um escudo de impunidade a quem vier a conspirar contra o povo. É o golpismo travestido de emenda constitucional: uma manobra para constitucionalizar a criminalidade, erguendo um muro de proteção para os que pretendem se colocar acima do povo e da lei.

Foi contra esse duplo ataque, a anistia e a PEC da Blindagem, que as ruas se levantaram no último 21 de setembro. As manifestações, convocadas por movimentos sociais e impulsionadas pelo setor cultural e artístico, deixaram um recado inequívoco: o Brasil não aceitará retrocessos. A pressão popular já produziu efeito, freando a tramitação da PEC e impondo derrotas ao campo golpista. É a prova de que a democracia não se defende apenas nas instituições, mas na força viva do povo mobilizado. Quando o país se levanta, o golpismo recua.

No processo de redemocratização, quando o povo brasileiro reivindicava a anistia para os perseguidos políticos, acabou-se produzindo uma distorção grave: torturadores foram igualados a torturados; os agentes da repressão, às suas vítimas; os criminosos de Estado, a cidadãos cujo único “crime” foi lutar por liberdade. Essa anistia “ampla” consolidou uma ferida que nunca cicatrizou: a ideia de que, no Brasil, quem atenta contra a ordem democrática encontra sempre refúgio na impunidade. Essa expectativa, ancorada na memória do equívoco histórico de 1979, cometido em nome de uma suposta transição para a democracia, é hoje um dos pilares de sustentação dos que conspiraram contra a Constituição e buscam escapar das consequências de seus atos.

É preciso lembrar, ainda, que não apenas os militares da ditadura foram poupados: todas as quarteladas e tentativas de golpe militar na história do Brasil até agora terminaram em algum tipo de perdão ou esquecimento oficial – ainda que posterior – da Primeira República às manobras contra João Goulart. Do ponto de vista jurídico, a anistia é um ato político excepcional, que perdoa crimes praticados em determinado contexto histórico. Mas ela não pode ser, novamente, usada para apagar atentados contra a democracia praticados por agentes políticos, pois a sucessão de anistias em nossa história forjou a convicção de que golpistas jamais seriam punidos, convicção que alimentou a audácia dos que planejaram o 8 de janeiro.

O que está em jogo, portanto, não é apenas um debate interno. Há hoje uma articulação internacional lesa-pátria em curso, que busca chancelar a impunidade de Bolsonaro. Lideranças da extrema direita global, como Donald Trump, pressionam e tentam impor tarifas e chantagens econômicas contra o Brasil para que seu aliado não seja punido. É a mesma lógica colonial que tenta subjugar nossa soberania nacional às conveniências de interesses externos. Denunciar essa ofensiva imperialista é parte inseparável da luta contra a anistia.

Ao defenderem agora a anistia de Bolsonaro e de seus cúmplices, setores da sociedade tentam reeditar esse mesmo erro, utilizando o precedente da ditadura como alicerce para justificar o injustificável. Querem, novamente, colocar algozes e vítimas sob a mesma régua, como se fosse possível equiparar golpistas e cidadãos democráticos. Mas aceitar isso seria abrir caminho para a repetição de novos 8 de janeiro, novas quarteladas, novos acampamentos golpistas, novas conspirações contra o voto popular.

A história ensina: quando o passado não é lembrado, ele retorna como ameaça. A anistia de ontem não fortaleceu a democracia: manteve a ferida aberta e deu aos inimigos da liberdade a expectativa de que poderiam agir sem medo. Hoje, diante de mais uma tentativa de golpe frustrada, cabe à nossa geração escrever um novo capítulo que não repita a caligrafia da impunidade. Nossa democracia, ainda tão jovem e tantas vezes submetida a pressões estrangeiras, manobras de poderosos e ameaças de generais, só amadurecerá se tiver coragem de responsabilizar os que a atacam.

O 21 de setembro já demonstrou que não aceitaremos retrocessos. As ruas disseram não à anistia e não à PEC da Blindagem. Cabe agora canalizar essa mobilização à reivindicação por conquistas concretas que melhorem a vida do povo, como a justiça tributária, trabalho digno, ampliação de direitos, ao mesmo tempo em que defendemos nossa soberania diante de qualquer ameaça imperialista.

Derrotada a PEC da Blindagem, precisamos seguir mobilizados contra os intentos de aprovar qualquer tipo de anistia aos golpistas. Anistiar é condenar o futuro a viver sob a sombra de novos atentados à democracia. Dizer não à anistia é afirmar que a liberdade não se negocia, que a memória não se apaga e que a justiça não pode ser confundida com esquecimento. Não aceitaremos anistia porque queremos um Brasil onde quem quer passar por cima da vontade popular saiba que responderá por seus atos e porque aprendemos com a história que a impunidade é o combustível do golpismo. Não aceitaremos anistia porque a democracia não sobrevive sem verdade e sem justiça. E é no rigor da justiça que escreveremos a sua defesa.