
‘Para Vigo me voy!’, Cacá Diegues e o cinema como ato de afeto
Documentário de Lírio Ferreira e Karen Harley homenageia o cineasta com imagens de arquivo, trechos de sua filmografia e reflexões sobre o ofício coletivo de fazer cinema
Por Lilianna Bernartt
O documentário Para Vigo Me Voy!, dirigido por Lírio Ferreira e Karen Harley, nasce como uma declaração de afeto a Cacá Diegues, cineasta fundamental para a história do cinema brasileiro. Desde os primeiros minutos, o filme não esconde sua intenção de ser uma homenagem: revisita episódios marcantes da trajetória do diretor, recupera imagens de arquivo e insere trechos de sua filmografia que se tornaram símbolos de diferentes momentos do país e da própria cultura nacional.
O filme é, acima de tudo, um gesto de afeto. Mas esse afeto não é ingênuo nem meramente nostálgico — há consciência de sua importância histórica, artística e política para o cinema brasileiro.
É um tributo assumido, mas que consegue seu efeito para além da exaltação do mito. O coração da obra reside justamente nas falas do próprio Diegues que, em diversos registros, compartilha reflexões sobre cinema, sociedade e o ofício coletivo de fazer filmes. Essa escolha revela um artista que não apenas construiu uma filmografia extensa, mas que soube pensar seu tempo e traduzir, em imagens, dilemas e desejos do Brasil.
O documentário ganha força ao rememorar obras que marcaram gerações, como Xica da Silva e Bye Bye Brasil. Para quem já conhece sua filmografia, o reencontro com essas imagens desperta um prazer quase afetivo, reavivando o impacto estético e político que tiveram em seu lançamento. Para quem não está familiarizado com o trabalho do diretor, o filme funciona como convite: instiga a curiosidade e abre caminhos para mergulhar no legado de um cineasta que soube equilibrar a radicalidade estética do Cinema Novo com a busca por comunicação com o público popular.
Dentro desse recorte, o coração do filme se concentra justamente quando o próprio Cacá fala — entrevistas antigas, depoimentos para jornalistas, momentos de bastidores. É ali que se revela não tanto o mito do cineasta, mas o artista, com suas preocupações, dúvidas e compromissos.
Ele aparece discutindo cinema, política e sociedade; reflete sobre representatividade, poder, narrativas do Brasil, exaltando a importância da coletividade intrínseca ao ofício de fazer cinema. O filme destaca momentos em que Cacá está junto de importantes nomes do cinema nacional, como Glauber Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos, debatendo, trocando ideias e compondo uma época marcada pelo cruzamento de vozes, de experiências íntimas com o público e com o social. Afinal, Diegues, junto com outros cineastas, foi parte essencial do Cinema Novo, movimento que renovou, à época, a linguagem cinematográfica no Brasil, propondo um cinema engajado, crítico e capaz de refletir o país em suas contradições mais profundas.
Ao ressaltar Diegues em uma tradição coletiva, ao mostrar encontros, conversas e embates com outros grandes nomes do cinema nacional, Para Vigo Me Voy! reafirma que sua trajetória não se resume a um indivíduo, mas a uma geração que buscou pensar o Brasil a partir das imagens.
Impossível ignorar que o fato de o filme não se preocupar em assumir seu tom celebratório faz com que algumas polêmicas ou tensões históricas sejam suavizadas, mas ainda assim, o recorte escolhido não diminui sua potência como registro. Mais do que biografia ou catálogo de obras, o documentário se sustenta como testemunho de um tempo e de um modo de fazer cinema.
No fim, o que fica é a sensação de que Para Vigo Me Voy! consegue cumprir um papel duplo: revisitar, com carinho e reverência, a vida e a carreira de Cacá Diegues e, ao mesmo tempo, renovar a importância de sua obra para novas gerações.
A homenagem também é um convite: revisitar seus filmes, pensar no Brasil que eles retrataram e reconhecer no gesto de Diegues — ora grandioso, ora contraditório — a vitalidade de um artista que sempre acreditou na força do cinema como arte coletiva e como espelho de um país em permanente transformação.
No fim das contas, é o retrato de um artista que se dedicou por completo ao seu ofício e que soube reconhecer e respeitar o poder transformador do cinema.