Sem anistia: privilégios versus o clamor das ruas
O grito de Sem Anistia que ecoou nas ruas de todo o país aponta o caminho: memória e justiça.”
Por Renata Souza e Isabela Amaral
O povo nas ruas marcou o domingo (21/09) como mais um dia histórico para a democracia brasileira. Enquanto, em Brasília, o Legislativo tentou avançar com propostas de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro e blindagem dos seus atores, nas ruas do país, ecoava o grito de Sem Anistia. O contraste entre plenário e rua expôs duas formas de fazer política.
Primeiro ato. No plenário lotado da Câmara dos Deputados, os olhos se voltam para o painel eletrônico iluminado em verde e vermelho. Os números da votação se acumulam em tempo real, enquanto deputados gesticulam, falam ao celular e se levantam apressados para registrar posição. O ar é de urgência: decide-se sobre o projeto de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro. Ao fundo, bandeiras do Brasil se destacam em contraste com a agitação das cadeiras e corredores. A cena condensa uma contradição: a solenidade das instituições frente ao peso histórico da escolha em debate. É o retrato de um Congresso dividido — ou nem tanto — entre a memória do golpe e a promessa, ou a ilusão, de virar a página.”
Segundo ato. Uma multidão ocupa o espaço, marcada pela diversidade de rostos e perfis. À frente, uma faixa com a palavra ‘ANISTIA’ riscada em vermelho se destaca, condensando o sentido do encontro. Entre gestos de entusiasmo e celulares erguidos para registrar o momento, o ambiente transmite energia e participação. Não se trata de caos, mas de mobilização: cada pessoa, à sua maneira, compõe um quadro coletivo em que vozes distintas se alinham em uma mensagem comum.
No primeiro ato, a política se revela em registro de Gabriela Biló, para a Folha de São Paulo, que captou o instante da aprovação, por 311 a 163, da urgência para o projeto de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro – anistia que pode beneficiar o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro.
No segundo, a política das ruas vem no registro de Michele Gomes, para o Mídia NINJA, que capturou a manifestação em Copacabana contra a anistia e contra a PEC da blindagem.


O contraste é eloquente. Enquanto no Legislativo se vota pela anistia e pela blindagem, atalhos que protegem uns poucos e consolidam privilégios, o que precisamos construir é o oposto: um projeto político permeável às demandas populares, atento às ruas que gritam por Sem Anistia, capaz de traduzir essa energia em políticas de superação das desigualdades.
Essa contradição é, justamente, uma oportunidade para pensarmos esse projeto para o país. Um projeto que não se fecha em arranjos de autoproteção institucional, mas que se abre em direção aos direitos fundamentais.
O que precisamos construir é um país que confronte seus fantasmas autoritários não com esquecimento, mas com justiça. Um país que rompa com os privilégios da blindagem e aposte na ampliação de direitos: na redução das desigualdades sociais, na inclusão real das favelas e periferias, no fim de escalas de trabalho desumanas como o 6×1, nas tarifas populares, na isenção do imposto de renda para quem ganha até cinco mil e na taxação das grandes fortunas que ainda se mantêm intocáveis.
Perdoar golpistas e blindar políticos é insistir na velha história de dois Brasis: o Brasil dos que podem tudo e o dos que nada podem. E onde fica o “todos somos iguais perante à lei”? O Sem Anistia que ecoou nas ruas de todo o país é o lembrete de que há outro caminho: o da memória, da justiça e da construção de um país onde os privilégios não perdurem e a igualdade seja a tônica máxima da política democrática.
Isabela Amaral é professora substituta de Direito Constitucional e Direito Ambiental da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, doutoranda e mestre em Direito Público pela UERJ e advogada.