Por Lilianna Bernartt

O Festival de Brasília, que há décadas se afirma como palco central de debates políticos e artísticos do cinema nacional, foi o cenário escolhido para o lançamento do Manifesto em Defesa do Documentário Brasileiro. Lido pelo cineasta Evaldo Mocarzel no último sábado, o texto denuncia a relegação sistemática do gênero nas políticas públicas de fomento e chama atenção para a necessidade urgente de valorização dessa vertente fundamental do audiovisual.

Não se trata apenas de um gesto simbólico. O documento, escrito pelas cineastas Daniela Broitman e Laura Faerman, foi o último a contar com a participação do lendário documentarista Silvio Tendler, falecido em 5 de setembro de 2025. Sua assinatura ecoa como um legado de luta, unindo passado e presente em defesa de um cinema que sempre se colocou no centro das transformações sociais e culturais do país.

Por que um manifesto agora?

O Brasil vive um momento contraditório: de um lado, o documentário cresce em produção, presença nas telas e relevância internacional; de outro, segue à margem das políticas oficiais de financiamento. Segundo dados da Ancine, entre 2014 e 2023, o gênero foi o que mais cresceu dentro da produção nacional, registrando aumento de 13%, enquanto a ficção caiu 6% no mesmo período. Nas telas, sua participação cresceu 35%, além de alcançar novas plataformas digitais e televisivas. Ainda assim, a ausência de linhas específicas de fomento coloca em risco tanto as produções de pequeno porte quanto os projetos mais complexos, que demandam anos de pesquisa, viagens e acompanhamento de personagens.

Essa é a razão de fundo do manifesto: chamar atenção para a contradição entre a força vital do documentário e o descaso institucional que ameaça sua continuidade. Em tempos de fake news e manipulação algorítmica, como alerta o texto, a escuta do real, o gesto documental e a preservação da memória coletiva tornam-se não apenas uma escolha estética, mas uma necessidade democrática.

Quem assina o documento

A adesão tem sido massiva. Já são mais de 650 profissionais do audiovisual, entre veteranos e novas gerações, que se uniram em torno da causa. Entre os nomes de maior destaque estão Helena Solberg, João Batista de Andrade, Eunice Gutman, Jorge Bodanzky, Tete Moraes, Hermano Penna, José Joffily, Walter Carvalho, Joel Zito Araújo, Aida Marques, Alice Andrade, Alziro Barbosa, Ana Petta e Ana Rieper. A lista inclui também produtores, roteiristas, montadores, distribuidores e outros agentes fundamentais da cadeia cinematográfica, o que evidencia o caráter coletivo e estrutural da mobilização.

Um gesto político e cultural

Mais do que uma carta corporativa, o manifesto é um ato político-cultural que reafirma o lugar do documentário como espelho do Brasil. Historicamente, foram os documentários que registraram greves, ditaduras, expressões culturais e vozes silenciadas. Foram eles que ampliaram o campo do cinema brasileiro ao se aproximar da vida real, das periferias, da cultura popular e da memória histórica. Ao ser lançado em Brasília, o texto reafirma a função histórica do festival como palco da resistência, consolidando um chamado coletivo pela sobrevivência e pelo fortalecimento de um gênero que nos ensina a ver o país por dentro.


Leia o texto do manifesto na íntegra:

Manifesto em Defesa do Documentário Brasileiro | Mais Cinema

Diante do contexto atual do audiovisual brasileiro, em que o documentário vem sendo sistematicamente relegado pelas políticas públicas de fomento, nós — profissionais do setor e apoiadores — manifestamos nossa profunda preocupação e nos mobilizamos por mudanças urgentes.

O documentário é uma ferramenta fundamental para a construção da memória, da identidade e da imaginação coletiva de um país. Ele cumpre um papel insubstituível ao registrar histórias sobre temas sociais, políticos, ambientais e culturais com profundidade e reflexão. Num país como o Brasil — vasto, diverso e marcado por desigualdades —, contribui também para revelar as camadas invisíveis da realidade e preservar saberes que correm risco de apagamento. Além disso, tem um papel educativo, político e social: pode denunciar injustiças, propor transformações e abrir espaço para o debate público.

Nos tempos em que vivemos, dominados pelas fake news, ele se torna ainda mais valioso. É uma importante ferramenta de conscientização; um gênero de filmes e programas televisivos que deve ser produzido para a defesa dos princípios democráticos.

Além disso, com o avanço acelerado da inteligência artificial no cinema — seja na geração de roteiros, recriação de rostos ou sintetização de vozes —, o documentário deve ser ainda mais valorizado, como um contraponto ético, estético e político. Em um cenário onde as imagens podem ser fabricadas com realismo e as narrativas manipuladas por algoritmos, cresce a necessidade de obras que partam da escuta e do encontro com o real.

O documentário tem conquistado espaço crescente no cenário audiovisual brasileiro. Entre 2014 e 2023, segundo dados do Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro (Ancine), foi o gênero mais registrado entre as obras nacionais, com crescimento de cerca de 13% — enquanto a ficção apresentou queda de 6% no mesmo período. Ainda segundo o Anuário, sua presença nas telas aumentou 35%. Esses números demonstram que o documentário é hoje um dos alicerces vivos da produção audiovisual brasileira, com crescimento sustentado mesmo após a pandemia. E esse avanço vai além das salas de cinema: longas e séries documentais têm ganhado destaque em plataformas de streaming e canais de televisão.

Com orçamentos geralmente muito inferiores aos da ficção, o documentário desempenha um papel estratégico na desconcentração de recursos da produção audiovisual, possibilitando a atuação de pequenas e médias produtoras em diferentes regiões do país e fomentando narrativas locais, pluralidade artística e diversidade de vozes.

O Brasil é um país reconhecido internacionalmente por seus documentaristas, com filmes que vêm conquistando importantes prêmios em festivais de prestígio. É um gênero que dialoga com outras linguagens, tem vida longa, circula por múltiplas janelas de exibição e alcança públicos diversos no mundo todo. Muitos dos principais cineastas de ficção também se dedicam ao gênero. É o caso de Walter Salles, que conquistou o Oscar com Ainda Estou Aqui e atualmente está dirigindo uma série documental sobre, entre outros temas, a redemocratização do país.

Atualmente, é fundamental defender a presença do documentário nas políticas públicas de fomento ao audiovisual no Brasil. É imprescindível que existam linhas específicas destinadas ao gênero em todos os editais de produção, finalização e distribuição — viabilizando, inclusive, sua circulação em instituições de ensino. É essencial e urgente que as políticas públicas garantam condições equânimes para o documentário brasileiro, reconhecendo suas particularidades, resiliência, importância cultural e social.