Além das big techs: protestos do Nepal e a política na internet

Protestos da juventude em Kathmandu revelam novas armas digitais contra a censura e abrem um capítulo do ciberativismo global

A Geração Z do Nepal saiu às ruas na última semana para protestar contra a corrupção e a censura estatal ao uso de redes sociais. A revolta teve um início pacífico e escalou para atos de extrema violência. Segundo notícias que li na mídia internacional, corroboradas por verbete da Wikipedia, os protestos somaram mais de 70 mortos e cerca de 2000 feridos. Seu principal efeito foi a queda do primeiro-ministro, Khadga Prasad Sharma Oli, cuja casa foi queimada. Outra residência incendiada foi a do ex- primeiro-ministro Jhalanath Khanal, o que resultou na injustificável morte de sua esposa. Casas de vários outros políticos foram atacadas. Os manifestantes também depredaram prédios públicos, entre os quais órgãos governamentais e o parlamento. Um governo interino foi montado com a ativista anti-monarquia Sushila Karki como primeira-ministra.

O curto-circuito é difícil de decifrar. São muitos os fios e as conexões soltas. Há um cheiro de queimado no ar. Em outros países asiáticos, como Bangladesh e Sri Lanka, ocorreram protestos semelhantes nos últimos anos. Os levantes são parecidos aos que vimos no início da década passada, da Primavera Árabe a Junho de 2013, no Brasil. No Nepal, o governo deposto era de esquerda, o que gerou júbilo entre expoentes da extrema direita brasileira como o deputado Nicolas Ferreira e o canal Brasil Paralelo. O que se pode dizer, no entanto, com certeza, é que a mobilização era disforme e sua liderança distribuída estava na mão de jovens indignados, os quais chegaram a receber apoio de setores socialistas. Defensores da monarquia deposta também tentaram pegar carona no movimento. Há risco de crescimento de grupos políticos que querem se valer da rebelião para desestabilizar a recente república nepalesa. Karki já anunciou novas eleições para março de 2026.

Como nos protestos de mais de uma década atrás, ícones pop fizeram parte da simbologia do movimento. Se na Espanha da Democracia Real Já era a máscara de Guy Falkes que circulava pelas ruas, agora o personagem evocado é Luffy, o líder pirata do mangá One Piece. Falkes surgiu da comic novel V de Vingança. Era um anarquista. Luffy, o pirata do chapéu de palha, é, sem dúvida, um libertário, mas batalha por um projeto coletivo. Assim, está longe de ser um desses fantoches direitistas que gritam por liberdade e defendem super ricos e líderes autocratas. Luffy quer ver ruir a elite do mundo. Por esse paralelo, os jovens nepaleses e suas bandeiras pirata lutaram pela derrocada de um governo que acusavam de corrupção e ostentação. São uma nova direita?

Por muitos fatores, o que está acontecendo no Nepal inaugura um novo capítulo da história da tecnopolítica das redes digitais. Isso porque, para contornar o bloqueio governamental à comunicação digital – que foi o estopim para o levante – os manifestantes usaram, entre outras ferramentas, o Bitchat, criado pelo fundador do Twitter (atual X), Jack Dorsey, com base em desenvolvimentos feitos pela vibrante comunidade global hacktivista. O Bitchat é um software livre de mensagem instantânea que funciona offline, de forma descentralizada, por meio do Bluetooth (redes mesh). No dia 8 de setembro, segundo o canal do Instagram Area Bitcoin, foram realizados 48 mil downloads do aplicativo por usuários do Nepal, cerca de 40% das descargas em todo o mundo.

Explico-me: enquanto outros aplicativos de conversação, como Whatsapp, Telegram ou Signal dependem de conexão e usam servidores centralizados, o Bitchat circula as informações apenas entre os aparelhos, portanto não pode ser rastreado nem ter suas informações bloqueadas. Os usuários armam suas próprias redes, que podem ter distintos tamanhos, e assim conseguem burlar qualquer controle estatal à livre comunicação. Esse tipo de uso é uma novidade – até porque o Bitchat é uma ferramenta recente. Outra novidade que vimos nesse processo foi o uso do Discord, que no Brasil também é popular entre a Geração Z, sobretudo os gamers. Segundo o The New York Times, os participantes do levante nepalense escolheram Karki como sua primeira-ministra interina por meio de um servidor no Discord ao qual deram o título de Assembleia. Karki é uma jurista que chegou a integrar a Suprema Corte e assumiu com um discurso de pacificação, centrado no combate à corrupção. Com mais de 70 anos, tem uma trajetória marcada pela defesa dos direitos humanos.

A história da cultura digital contra a opressão não começou ontem. Desde que a web se popularizou, no início dos anos 1990, diferentes tecnologias vêm sendo usadas em diferentes épocas. Agora, como demonstra o levante da Geração Z no Nepal, não se trata apenas de lutar contra a eventual censura governamental, mas também contra as soluções proprietárias de empresas estadunidenses. O Bitchat é criação de um super rico dos EUA, mas com uma outra abordagem do que a internet deve ser – aberta, livre e descentralizada. E esse super rico só conseguiu criá-la porque se escorou em contribuições essenciais da comunidade de software livre.

Ainda em 1994, os Zapatistas foram tecnopolíticos pioneiros. Os comunicados do Subcomandante Marcos eram distribuídos para caixas de e-mail de ativistas do mundo todo. Com isso, conseguiram enorme apoio da opinião pública ao seu levante revolucionário contra a globalização neoliberal. No fim dos anos 1990, o movimento antiglobalização criou o Indymedia, um site colaborativo onde nós, os militantes, éramos os produtores de conteúdo. O mesmo ocorreu nos Fóruns Sociais Mundiais.

Na Espanha, após os atentados terroristas de Madri, os ativistas se articularam por SMS para realizar protestos que demonstraram a culpa do governo de direita por aquela imensa tragédia. As autoridades quiseram criar uma cortina de fumaça, mas a população impediu. Resultado: ficou evidente que as explosões eram uma resposta à aliança da Espanha com o governo dos EUA na guerra do Iraque. São muitos e até mais conhecidos os exemplos de uso de sites de redes sociais, como Twitter e Facebook, para articulação de protestos, com diferentes colorações políticas.

O levante de Katmandu nos mostra que a história da internet livre não acabou no jantar maléfico de Trump e seus asseclas do Vale do Silício ocorrido na semana passada. Nem só de BigTechs ultracapitalistas estamos servidos. Não podemos deixar a bandeira da liberdade ser hasteada pela extrema direita, que tenta agora capturar as narrativas contestatórias, como se o ciberativismo tivesse sido inventado por eles. Não foi. E é bom que os ativistas brasileiros fiquem de olho nessas possibilidades. Em 2026, nosso país será o epicentro principal da disputa planetária pela democracia. O lado de lá é pródigo em construir narrativas mentirosas e conta com muitos recursos, financeiros, mas não só. E nós, os ativistas progressistas, contamos com o que?