
‘A Queda do Céu’: Xamãs Yanomami mostram que a crise ambiental é também espiritual
Livro profético de Davi Kopenawa ganha adaptação hipnótica para o cinema, com estreia marcada para novembro
Por Daniele Agapito
O CÉU CAIRÁ!
O céu cairá, e você estará no corredor de um shopping com sacolas nas mãos, quando um relâmpago lhe trincar os ouvidos. Seu desdém incondicional não fará você soltar a mercadoria. Ficará em grande desassossego, pensando no carro estacionado, nos computadores, na bolsa de valores ou qualquer outra bolsa de marca guardada no closet, sem chance de resgate. Em pânico, toda a raça humana, com seus bens de consumo, será arremessada para o mundo subterrâneo. E bum! Bum! Bum! O azul celeste despencará sobre nós. Espatifado. O céu cairá!
“Mas enquanto houver xamãs vivos para segurá-lo, isso não vai acontecer. Ele vai balançar e estalar muito, mas não vai quebrar.”
— A Queda do Céu, Davi Kopenawa e Bruce Albert (p. 194)
A Queda do Céu é uma profecia que virou livro e, agora, um livro que virou documentário. O texto nasce da transcrição de mais de 100 horas de diálogos gravados entre 1989 e 2001, entre o xamã yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert. O documentário inaugura um novo capítulo, registrando um ritual em que homens Yanomami se unem para sustentar as abóbadas do céu, impedindo seu desabamento. Para suportar o peso do cosmos, entram em transe, soprando paricá nas narinas uns dos outros, pó alucinógeno extraído da casca de uma árvore amazônica.
Nosso Nostradamus Yanomami nasceu em 1956, numa aldeia enraizada na floresta. Distante da Idade Média europeia, mas não de suas pestes: junto com os primeiros napëpë (brancos, não indígenas), vieram os vírus que, no fim dos anos 1950, mataram quase toda a sua família. Em 1967, chegaram também os missionários da New Tribes Mission, trazendo mais doenças e mais mortes.
Davi anuncia o fim dos tempos com a intimidade de quem escuta os xapiripë, espíritos da floresta, direto da fonte. O recado é simples: manter a floresta em pé.
O livro inadaptável
A equipe do documentário foi categórica: o livro é impossível de adaptar. Então, não vá ao cinema esperando obediência absoluta à obra literária. O filme é outra coisa. Os enquadramentos do céu vasto, a cosmovisão indígena, os olhares enigmáticos dos povos originários, o sopro da floresta, a ligação com o invisível — tudo converge para uma experiência sensorial que explode os sentidos.
“O objetivo não era dar voz ao povo Yanomami, era encontrar o cinema que eles tinham para nos oferecer. A tentativa revela a nossa distância (…) o abismo que abrimos entre nós.”
— Renato Vallone, montador do filme, no Fórum Metrô
Recordo a canção Um Índio, de Caetano Veloso, escrita em 1976, que também profetiza: “um índio” descerá de uma estrela colorida, numa “velocidade estonteante”, pousando no hemisfério sul após o extermínio da última nação indígena.
No documentário, Kopenawa fala de outra descida extraterrena: homens semelhantes a vespas gigantes pousarão sobre a Terra, sinalizando o fim.
“Quando eles (os Yanomami) morrerem, o céu vai cair… É uma autoctonia: quem funda essas terras são eles; se essa terra acabar, é porque eles acabaram.”
— Renato Vallone, no Fórum Metrô

O povo da mercadoria
“Como vocês são capazes de deixar as coisas dos mortos para os vivos? Assim, eles ficarão olhando para essas mercadorias, não conseguirão esquecer os mortos e irão sofrer. Vocês, brancos, são mesmo outra gente!”
— Fátima, mulher Yanomami, à revista Sumaúma
No livro e no filme, os Yanomami nos chamam de “povo da mercadoria”, dominados pelo xawari, espírito canibal das epidemias, inseparável da nossa obsessão por ouro, madeira, pastos e heranças. Entre eles, não existe sede de acúmulo. Todos os pertences dos mortos são destruídos, para que nem vivos nem desencarnados se apeguem à matéria.
Se ainda não ficou claro o que representamos para os indígenas desta etnia, pense em Sméagol, de O Senhor dos Anéis: o pobre Gollum, mental e fisicamente corroído, obcecado por um anel, repetindo sem parar — my precious, my precious, my precious.
O fim já começou!
Os Yanomami são seres musicais. Alimentam a relação com seus parentes e com o espírito por meio da vibração da voz e do som de instrumentos rituais. A trilha do filme nasce dessa escuta. Nada de repertório clássico, pop, bossa nova ou R&B.
“Minha escuta era fisgada por alguns eventos. Como a criança Yanomami gritando no meio da mata… aquele som que ecoa junto com animais e outros sons da floresta.”
— Guile Martins, editor de som do filme, no Fórum Metrô
A trilha envolve o espectador numa dança cósmica. A boca de Davi imita bombas, pássaros, líquidos e cigarras. Outros indígenas cantam em simultâneo, encostando-se uns nos ouvidos dos outros. Em momentos de melancolia, ouvimos o gorjeio do tucano branco, que para os Yanomami incorpora o som da saudade.
Ao fim, atravessamos a porta do cinema e damos de cara com o ponto de partida: shopping. Sacolas. Carros. Computadores. Closet. Desdém. Desassossego. Fom-fom. Tic-tac. Vrum-vrum. Cof-cof. Ratataaá-ta. Ratataaá-ta! A Queda do Céu escancara nossa mente utilitarista, desencantada e surda à natureza, revelando a desconexão com o ecossistema e a falência de duas instâncias na sociedade do capital selvagem. A crise ambiental é, antes de tudo, uma crise espiritual.
“Apesar de tudo que vocês fizeram, eu estou deixando vocês me filmarem. Será que vocês serão mesmo meus aliados?”
— Justino, xamã Yanomami
Cine Ninja esteve presente no “Fórum Metrô: As Funções do Cinema”, em Curitiba, participando de uma sessão exclusiva do documentário A Queda do Céu. Após a exibição, houve uma conversa com Renato Vallone e Guile Martins. O filme tem estreia prevista para novembro deste ano.