
O superpoder da drag queen Mamonna: Inventar realidades possíveis
Finalista do reality Werk It e destaque no The Town, a artista carioca conta como transformou resistência em beleza, arte e visibilidade
Por Luiz Vieira
Chegar até a final de um programa de moda e beleza. Performar no Rock in Rio ao lado de Daniela Mercury. Assinar, em 2023, toda beleza e visagismo do palco New Dance Order no The Town. Ter seu trabalho de maquiagem notado pela marca da sua maior diva: Rihanna. Isso tudo parece invenção, mas aconteceu. Este é o superpoder da drag queen Mamonna.
Nascida e criada no bairro de Quintino, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e tendo vivido parte da sua infância no Ceará, estado original da sua família, a artista se orgulha de levar adiante um olhar que parte do subúrbio, da cultura queer e da estética da resistência.
E é com ela e sobre a sua passagem pela primeira temporada do reality show de moda e beleza Werk It, que o FODA conversa hoje.
Para além do programa, Mamonna também fala sobre os avanços e retrocesso das pautas LGBTs em âmbito global. “É muito difícil lidar com a realidade cruel do mundo, que vem flertando cada vez mais com essa extrema-direita violenta, que limita os nossos espaços de forma agressiva”, ressalta.
Um pequeno spoiler: Mamonna também estará na 2ª temporada do programa com um quadro próprio. Werk It conta com direção geral de André Nunes. É só isso que podemos dizer até aqui. Siga a criativa Mamonna nas redes sociais (@eumamonna) para conferir mais novidades!

Com vocês, a poderosa Mamonna:
1. Como foi participar do programa?
Passar no programa foi incrível! Foi uma experiência que eu não esperava, especialmente nesse momento da minha vida. Foi uma surpresa muito boa mesmo. Eu sou uma drag queen, faço tudo de forma criativa, cabelo, maquiagem, figurino, tudo baseado nas minhas próprias referências. Mas, até então, eu nunca tinha vivido uma experiência totalmente voltada para a moda, com esse tipo de desafio. Já tinha maquiado outras pessoas, já tinha trabalhado em eventos grandes, inclusive de moda, mas nunca participei de algo assim. Então, o programa veio como uma experiência completamente inovadora na minha vida. Ao mesmo tempo, era tudo que eu queria experimentar e tudo que eu queria mostrar. Foi muito, muito incrível poder fazer parte disso e, principalmente, ter chegado à final. Passar por todos os desafios e viver tudo aquilo foi uma experiência super positiva pra mim.
2. Quais foram os maiores desafios?
Acho que o maior desafio de todos foi entender, desde o início, qual era o conceito do programa. Por ser algo novo, inédito no Brasil e até no mundo, a gente não tinha uma referência de como seria. Era um formato completamente inovador: trazer os bastidores da moda, da beleza, da maquiagem, das capas de revista, para um reality show. Então, foi uma experiência incrível, tanto para me reconhecer enquanto maquiador nesse contexto, quanto para me entender enquanto indivíduo dentro de um coletivo.
A competição foi pensada em formato de houses, ou seja, em grupo, e só na final é que o esquema mudava para uma disputa individual. Foi nesse processo que a gente também passou a perceber quem eram nossos verdadeiros aliados e quem poderia ser visto como adversário. No nosso caso, na nossa house, isso foi até fácil de identificar. Desde o começo, a gente entendeu que precisava estar muito unido. E seguimos assim até a final. Inclusive, competimos entre nós na etapa final, mas sem aquela sensação de rivalidade.
A verdade é que a gente construiu algo muito maior juntos, de forma coletiva, que marcou a nossa trajetória, no programa e na vida. Ali, a competição tradicional não fazia sentido pra gente. Claro, um só levaria o prêmio, mas a união entre nós três foi essencial para encarar os desafios do programa.
3. Qual foi a prova que ela sentiu que foi mais difícil fazer?
A prova mais difícil de fazer, pra mim, foi, sem dúvidas, a prova dos ícones. A gente tinha que retratar pessoas icônicas da música, não necessariamente brasileiras, mas, no fim, todas as houses acabaram escolhendo ícones do Brasil. Foi um desafio enorme porque, quando você vai representar a imagem de um artista que já existe, que já tem uma identidade muito marcada na história da cultura, da moda, da beleza, enfim… é muito difícil. É uma figura já consagrada, então reinventar e reimaginar isso pode dar muito certo — ou muito errado.
Além disso, a gente teve o desafio surpresa de não poder usar o acervo de figurinos do programa nesse episódio. Então, tivemos que contar com a criatividade e com o que tínhamos à disposição — no caso, o que o Otto, nosso stylist, tinha. A gente precisou ser muito criativo ali com os recursos limitados, para conseguir criar a imagem da divindade da Elza Soares que a gente tanto queria transmitir.
Essa imagem foi muito importante pra nós três. Foi realmente desafiador conseguir colocar em prática a ideia que a gente sonhou, imaginou, criou na nossa mente: retratar essa Elza imortal, essa mulher do fim do mundo, essa artista gigante, que tem uma relevância imensa, não só pra gente, mas para muitas gerações de pessoas pretas, queers e, principalmente, mulheres negras no Brasil.
A gente fez tudo com muito cuidado. Foi difícil, deu medo de errar, mas seguimos firmes rumo à semifinal do programa. Foi muito especial. É uma imagem que vou levar comigo pra sempre, ficou marcada no meu coração. E também foi muito especial por conta da modelo que escolhemos. No fim das contas, foi realmente um grande desafio encontrar uma unidade nesse episódio, mas conseguimos.

4. O que ela vai levar do reality pra vida pessoal e profissional dela?
Com toda a certeza a experiência, tudo que eu aprendi. Foram muitas coisas: técnicas, aprendizados, desafios… Mas, principalmente, um grande exercício de desapego. No aspecto técnico, aprendi muito, a lidar com o tempo, com os desafios, com a entrega sob pressão. Tudo isso num reality show, que é uma situação extrema. Esses aprendizados vão ficar pra sempre marcados na minha forma de trabalhar, de criar, de realizar. Foi essencial pra eu entender o que realmente importa quando a gente tá sob pressão.
E, sem dúvida nenhuma, pra mim, o maior prêmio desse programa foram as amizades que construí lá dentro. Principalmente o pessoal da minha house. Mas eu também quero destacar outras conexões importantes — além da Bem Negrona e do Otam, o Diego Nardis, que se tornou um amigo muito querido.
A gente se conectou de verdade lá dentro. Já trouxe ele pra minha vida aqui fora, trabalhamos juntos, fazemos projetos, trocamos muito. Ele é um profissional incrível da área de audiovisual e beleza, com mais de 20 anos de experiência. A conexão foi natural, forte, e a torcida dele por mim é recíproca. A gente se dá super bem.
Engraçado que o Diego era o único participante que também morava no Rio de Janeiro, mesmo não sendo carioca. E que sorte a minha me dar tão bem com ele, hoje temos uma amizade sólida aqui fora. Acho que isso é o mais importante mesmo: essas conexões que, se não fosse o programa, talvez nunca acontecessem. Foram 21 participantes de todos os cantos do Brasil, e a gente foi colocado junto ali. Nossas afinidades se revelaram de forma muito bonita e verdadeira.
5. Como foi receber a notícia que ela tinha entrado no reality?
A noite em que eu soube que tinha entrado no reality, pra mim, foi o momento mais surpreendente, depois da entrevista com a psicóloga. Porque o meu maior medo era ser eliminada ali, na conversa com ela. Mas eu fiquei muito feliz, muito feliz mesmo, porque, enfim, foi no meio do Carnaval que eu recebi esse convite. Eu estava com muita expectativa de participar da segunda temporada do Drag Race Brasil, só que o convite não vinha. Chegou um momento em que eu achei que nem ia mais ter outra temporada. E, de repente, uma pessoa apareceu no meu Instagram e me mandou uma mensagem: ‘Você quer participar de um reality de maquiagem, de moda?’ Aí eu falei: ‘Vamos!’ Me inscrevi sem nenhuma esperança, e fui passando as etapas sem perceber. Quando vi, eu já estava lá dentro! Eu pensei: ‘Meu Deus, isso é inacreditável.’ Foi realmente a realização de um sonho.
Poder ter tido essa oportunidade foi muito especial, porque eu sempre soube que só participaria de um reality show se fosse pra mostrar talento, criatividade — e é por isso que eu queria tanto entrar no Drag Race. E como o Werk It acabou sendo, eu fiquei imensamente feliz. Fiquei muito feliz mesmo. Pra mim, estar naquele espaço, podendo mostrar as mãos que criam a imagem da minha drag tocando também em outras obras, foi mágico.
Eu não tinha grandes expectativas quanto à minha participação, o que foi ótimo, porque me manteve com os pés no chão e bem focada pra encarar a disputa. Mas eu estava muito animada pra estar ali, muito animada pra fazer, pra mostrar o meu trabalho e quem eu sou. E acho que o mais incrível de tudo foi isso: realizar esse sonho de apresentar meu lado criativo de uma forma super produzida, que foi exatamente o que aconteceu lá dentro de Werk It.
6. E como foi chegar até a final, essa trajetória, essa linha do tempo?
Chegar à final do Werk It foi surreal. Nem nos meus maiores sonhos eu imaginava que ia entrar num reality show de moda, um dos maiores do Brasil, se não o maior. Hoje em dia, a gente tem pouquíssimos realities com essa temática, e esse é, inclusive, um programa que foca exclusivamente no trabalho criativo dos profissionais da beleza, do design e da moda. Então foi super especial.
De verdade, eu não estava esperando. Mas, lá no comecinho do programa, quando ganhei o primeiro episódio, eu pensei: “Agora ninguém me tira daqui.” E foi muito bom também dividir a house com outras pessoas que estavam com a mesma sede, mas não de competição, e sim de mostrar trabalho, mostrar talento, de expressar nossa criatividade e hackear esse espaço com a nossa tecnologia artística. Isso foi muito especial pra gente. Acho que foi fundamental.
Essa trajetória teve muitos altos e baixos. A gente não chega na final vencendo sempre. E isso, pra mim, é muito real. Foi um desafio atrás do outro. Dá pra ver nos episódios que não era sobre ser o melhor o tempo todo, e sim sobre ser resiliente, ser criativo, saber se virar com o que tinha. E acho que isso é uma mensagem muito poderosa.
A gente conseguiu tocar muitas pessoas que se identificam com o nosso trabalho, com a nossa identidade, com quem a gente é. E, pessoalmente, foi muito significativo pra mim. Eu precisava me ver ali. Ver a minha trajetória, acompanhar tudo o que me levou até aquele lugar foi muito emocionante. É sobre poder torcer por alguém com quem você se reconhece.
Tem sido muito bonito também ver a reação das pessoas, tanto na rua quanto na internet. A gente tem recebido muitas mensagens carinhosas de quem se conecta com o que a gente propôs em cada desafio, em cada criação. Então, chegar na final depois de uma trajetória tão acirrada, cheia de reviravoltas, foi uma emoção enorme. Cada desafio era eletrizante, porque nada estava garantido. A gente estava jogando com adrenalina e com o coração, querendo muito mostrar o nosso trabalho.

7. Como ela sente também o avanço e, por que não dizer assim, o retrocesso também das pautas LGBTs no Brasil hoje?
É muito triste pensar nisso. É claro que a gente não pode negar que houve avanços nas pautas LGBTQIA+ nos últimos anos. Temos pessoas super importantes lutando por nós e ganhando espaço, como a Erika Hilton, por exemplo, uma grande ativista, deputada, que tem defendido não só as causas LGBTQIA+, mas também as lutas das pessoas trabalhadoras, das classes mais baixas. Isso é fundamental para nós.
Mas também é muito difícil lidar com a realidade cruel do mundo, que vem flertando cada vez mais com essa extrema-direita violenta, que limita os nossos espaços de forma agressiva. O governo Trump, por exemplo, nos Estados Unidos, mostrou como essa influência norte-americana tem impactado diretamente a internet e os meios de comunicação. Ele criou leis muito claras e objetivas para atacar pessoas trans, pessoas LGBTQIA+, desmontando políticas que estavam sendo construídas globalmente, especialmente em relação às redes sociais, às empresas e à presença das nossas vozes nesses espaços.
E isso tem chegado ao Brasil. Eu percebo muito esse impacto nas marcas e campanhas durante o mês do Orgulho. Há uma retração, uma censura velada, e isso nos afeta não só do ponto de vista comunicacional, mas também econômico e político. Porque não se trata apenas de representação, é sobre poder, é sobre acesso a recursos, é sobre quem decide o que vai ter visibilidade.
Infelizmente, essas lideranças mundiais acabam ditando para onde vai a atenção na internet, e o Brasil, como país da América Latina, sofre muito com isso. É difícil lidar com tanto retrocesso. Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa ser ainda mais criativo, buscar novas formas de se comunicar e, sobretudo, seguir resistindo. Porque resistir é essencial para a nossa comunidade. E apesar de tudo, seguimos firmes, consistentes, porque não temos o luxo de baixar a cabeça.
8. E como um programa como esse ajuda a gente a formular e elaborar novas narrativas para a comunidade?
Eu acredito que, dentro desse programa, a comunicação mais importante é a imagem, essa busca pela imagem perfeita, essa criação de uma estética potente. E já começamos o primeiro episódio, por exemplo, vencendo o desafio com a imagem de uma travesti que representa toda a estética da moda, trabalhando o conceito criativo que estávamos desenvolvendo, nesse lugar de brilho, de potência e de beleza. Isso é muito importante, é forte, é impactante, e infelizmente, ainda é raro. É muito difícil ver hoje na mídia, nas telas de TV, e até mesmo no streaming, pessoas trans, especialmente pessoas trans negras, ocupando esse lugar de sucesso, poder, reconhecimento e visibilidade positiva.
Ter uma apresentadora como a Max, por exemplo, comandando um programa como esse, mostrando toda a experiência dela, com anos de carreira, de trabalho, de capas assinadas… É algo muito significativo. Ela compartilha com a gente informações valiosas, sugestões, orientações. Estar sob a condução dela é simbólico. É uma realidade que está sendo mostrada de maneira exclusiva, genuína e extremamente representativa dentro de Werk It.
Então, para mim, programas como esse, que são raros e difíceis de realizar, constroem novas narrativas de potência para nossas comunidades. Narrativas de possibilidade, de existência, de pertencimento. Eles mostram que sim, é possível. Que estamos muito além do que é imposto a nós pela sociedade, que nos marginaliza constantemente. Ver essas figuras brilhando, criando, pensando e trazendo nossas narrativas e discussões para o centro é algo extremamente positivo.
Quero destacar principalmente o trabalho da Universal Plus, do canal E! e da Monster, por realizarem um programa que foge de todas as obviedades e clichês que geralmente cercam as pessoas queer na mídia. Eles apresentam nossa presença de forma lúcida, respeitosa e potente. Existir dentro desse programa, mostrar esse nível de profissionalismo, de excelência, de potência com pessoas reais, nessa realidade, já é uma grande vitória.
E isso precisa servir de inspiração para muitas outras produções, porque ainda existe um enorme déficit de conteúdos LGBTQIA+ com pessoas ocupando lugares de protagonismo — tanto na frente quanto atrás das câmeras. Isso é essencial, porque a forma como lidamos com essas pessoas, com o outro, com o espaço do outro, com a escuta e o respeito, também foge desse lugar da ignorância. E trazer essas discussões para um programa de TV em 2025 é revolucionário. Num momento em que o mundo tenta apagar nossa existência, negando até mesmo passaportes para pessoas trans, nós estamos aqui dizendo: existimos, brilhamos e temos, sim, lugar no protagonismo.