A última noite do 53º Festival de Cinema de Gramado presenciou um fato histórico: “5 Tipos de Medo”, primeiro longa-metragem mato-grossense a disputar a mostra competitiva, também foi o filme mais aplaudido da edição. Um minuto e oito segundos de palmas — para ser exata.

O longa nasceu do curta “3 Tipos de Medo”, produzido em 2016 em Cuiabá. A obra original foi dirigida por Bruno Bini, cineasta nascido em Rondonópolis, que já havia se destacado com filmes como O Coração do Príncipe e curadorias regionais. A partir da repercussão do curta e do desejo de aprofundar os medos estruturais que atravessam as relações no Brasil contemporâneo, o projeto ganhou fôlego e dimensão nacional, tornando-se longa-metragem lançado agora no Rio Grande do Sul.

A recepção, tão calorosa quanto a cidade de origem, não foi só do público. Veículos como Papo de Cinema e Tela Brasileira destacaram o filme como “uma ruptura regionalista com potência universal” e elogiaram a capacidade de Bini em equilibrar a denúncia social com estética cinematográfica de impacto. 

João Vitor Silva, Bárbara Colen e Rui Ricardo Diaz interpretam, respectivamente, a vítima, a policial e o advogado. Cada um deles representa, em sua maneira, camadas do medo coletivo: o medo de morrer, o medo de perder o controle e o medo de fracassar. As atuações são viscerais, especialmente quando vemos Bárbara, dividida entre a autoridade e a vulnerabilidade, e Rui brincando com a justiça para defender quem ama. E, como num bom retrato da sociedade, ninguém está certo.

Ainda no núcleo central, temos dois estreantes no cinema: Bella Campos, em seu primeiro longa, e Xamã, em sua estreia como ator. Para eles outros sentimentos estão em jogo.

Xamã interpreta Sapinho, ou Flávio Castro de Lima — personagem inspirado em uma figura real, um traficante morto em confronto com a polícia aos 31 anos. Conhecido como “Xerife” pela comunidade, era mais que temido: era querido. Num bairro esquecido pelo poder público, a vizinhança chegou a fazer uma rifa para pagar o advogado do “protetor do povo”. Foi essa notícia que chamou a atenção de Bruno Bini e deu origem ao roteiro.

Para compor Sapinho, o rapper contou com uma ajuda luxuosa: um grupo de rappers locais, liderado por Linha Dura, ícone do hip-hop cuiabano com mais de 30 anos de estrada, formou a chamada “Tropa do Sapinho”. Linha, inclusive, protagonizou um dos momentos mais marcantes (e hilários) do longa.

Bella Campos dá vida a Marilene, uma jovem que enfrenta um relacionamento abusivo e tenta encontrar saídas. Em entrevistas, Bella contou que a experiência foi desafiadora, mas a personagem foi fácil de achar. Como expectadora conterrânea fica fácil entender porque – usar o seu sotaque, estar debaixo do calor conhecido da infância e contracenar sob a terra vermelha batida significa casa e gravar em casa é, muitas vezes, o que torna o set mais seguro.

A sessão de estreia aconteceu no dia 21 de agosto, dia em que foi ao ar o capítulo de “Vale Tudo”  que marcou a ruína de Maria de Fátima, sua protagonista na novela. En quanto isso, na vida real, Bella prova que, mesmo aos 4 anos de carreira, sua sustância transborda a pequena e grande tela. 

Aliás, em um ano em que dois dos principais prêmios do cinema brasileiro foram para obras ambientadas longe do eixo Rio-São Paulo — mergulhos profundos no Amazonas (O Último Azul) e em Pernambuco (Agente Secreto) —, “5 Tipos de Medo” entrega mais uma camada de um Brasil ignorado pela lente mainstream, mas latente e pulsante para quem o habita. Para quem estava na plateia gaúcha, ouvir “vote”, “gurizada”e os muros do Novo Colorado pode parecer algo distante, diferente, mas pra gente, o bolinho de arroz vai ser sempre soberano. 

Rodado num estado reconhecido quase exclusivamente por sua produção agrícola, “5 Tipos de Medo” desmonta o mito da monocultura. Bruno Bini conduz uma agrofloresta de sensações — densa, rica, biodiversa — onde o medo é o elemento que faz o filme ultrapassar a simples categorização de “obra de gênero”.

Mas entrega nisso também: há tiroteios entre civis, traficantes e policiais; rebelião em presídio; luta corporal entre “mocinha” e “bandido” (com destaque para Bárbara Colen e seus treinos de jiu-jitsu). Tudo isso montado com inteligência para retratar a violência sem glorificá-la.

O resultado é um filme que desafia o desdém e o desconhecimento do eixo Rio-São Paulo sobre a arte produzida fora dele. Que pra mim ficou claro mais uma vez  quando recebi a seguinte pergunta nos corredores do festival: “É a primeira vez que Mato Grosso realiza um longa?” Bom, se eles não nos conheciam, agora conhecem. Na noite de premiação, “5 Tipos de Medo” foi consagrado com quatro Kikitos. A primeira vez que o meu estado esteve em Gramado, levou quatro Kikitos. Melhor Roteiro, Melhor Montagem, Melhor Ator Coadjuvante e o maior da noite: Melhor Filme.

Para nós cuiabanos, a sensação que fica é inédita: “Ah, então é assim que o sudeste se sente?”. Mas não é um momento de inveja e sim de autoconhecimento. Em noventa minutos, provamos que somos mais do que o centro geodésico da América do Sul — somos também o nosso próprio centro narrativo.

Isso fica claro pra quem enxerga Hell City como ela é: A mesma que entregou prêmios no VMB, na Rolling Stones e revolucionou a forma de fazer cultura de forma independente. E pra melhorar, não é preciso se deixar levar pela emoção da representatividade: entre as reviravoltas do roteiro, fica claro que esta é mais uma adição ao brilhante e diverso momento que o cinema brasileiro vive. 

E agora, ele se tornou mais Fora do Eixo.